A crônica que eu espero que ele não leia

Ter um amor platônico aos vinte e dois é tão patético que resisto em acreditar. Não conto isso nem pro meu travesseiro. Nem pra a minha mãe. Nem pro diário que já não tenho (se bem que estou contando neste texto, o que é muitíssimo pior).

Eu devia ter lido mais quadrinhos em vez de histórias fantasiosas quando era criança.

Eu tinha um armário pra Nárnia na imaginação. Vivia em um mundo que absolutamente não existia, e não me lembro se eu realmente sabia disso ou, às vezes, me perdia na linha tênue entre criação e realidade.

Isso devia ter passado aos quinze, eu acho, ou talvez antes, considerando o quão precoce eu costumo ser, mas o fato é que não passou. Até aprendi a cozinhar cedo e fui morar sozinha antes dos dezoito, mas a Alice continua aqui. Nenhuma dessas máscaras da vida adulta me redime: continuo ridiculamente infantil, e isso até seria poético se não fosse absolutamente trágico.

Você não tem nada com isso, é verdade, mas veio parar aqui porque agora ocupa o posto de amor platônico de algumas semanas. Ou dias, talvez, depende de quantas coisas eu seja capaz de inventar, no caminho, para alimentá-lo.

Como te esperar chegar às oito pra me levar ao cinema. Cinema não, você tem mais cara de Netflix. Você vai chegar às oito pra me buscar pra a gente ver Netflix por oito horas seguidas, mesmo que ninguém aguente oito horas seguidas em frente à TV – afinal, a imaginação é minha.

Até comprei um vinho da sua uva preferida (eu não sei qual é, mas também posso inventar isso), vou cozinhar massa fresca com provolone (na minha cabeça, você adora provolone) e nós vamos jantar, beber vinho, ver Netflix, fazer sexo e jogar vídeo-game (é claro que você adora vídeo-game).

Eu vou rir quando você acordar com uma samba-canção ridícula que ganhou de presente do seu avô e você vai fazer uma piada pra disfarçar o constrangimento.

Já até pedi pro meu gato – o nosso gato que você ainda vai conhecer – pra ele não te morder tanto quando você chegar (conversar com gatos não é nada para alguém que inventa relacionamentos futuros fictícios com desconhecidos).

Você deve se lembrar nitidamente de mim. Eu estava naquele evento que você aceitou ir só pra divulgar o seu livro e acabou com uma fila gigantesca de pessoas querendo te abraçar e dizer as mesmas coisas num final cansado de terça-feira. Aquela moça de franja e vestido azul, é claro que você se lembra.

Eu era quase a última da fila (simbólico, não?), mas resisti bravamente. Quando chegou a minha vez você já estava gasto. Talvez quisesse sair dali o mais rápido possível e finalmente respirar o conforto das ausências.

Mesmo assim eu não te poupei. O amor é egoísta e o amor platônico mais ainda.

Eu tinha só alguns minutos com o cara que nunca vai me pedir nudes pelo Whatsapp, aliás, com o cara que nunca nem pedir o meu Whatsapp, mas eu tinha o dever moral, por fidelidade ao meu platonismo, de não falar nada que tivesse qualquer sentido.

Eu tinha obrigação de ser meio louca e de parecer confusa, porque nenhuma coerência combinaria com aquela situação banal pra você e, pra mim, que sabia das minhas próprias intenções, particularmente ridícula.

Eu tinha que errar o nome do seu livro (disse passatempos em vez de percatempos, e depois disso nem você e nem ninguém vai acreditar que eu sou sua fã).

Eu tinha que perguntar se você fuma maconha pra escrever. E eu tinha que ter dito que você mentiu quando disse que não porque fica imprestável. E isso não era suficiente, eu ainda precisava perder o pingo de noção que me restava e dizer que, como leitora, estava decepcionada porque eu tinha certeza que conhecia o seu processo criativo.

Eu leio tudo o que você escreve, tudo o que você tira do fundo da alma, eu presto atenção naquilo que você é no momento mais intenso e vulnerável de nossas vidas que é o momento da escrita: há, afinal, alguma coisa mais íntima que isso?

É que você escreve com tanta verdade que me surge a sensação falsa e petulante de que nós estamos em uma mesa de bar discutindo trivialidades. Quando fui ver, já estava sendo traída pela certeza de que te conheço, foi inevitável.

E aí fiquei mais duas semanas pensando na minha falta de noção, no quão bonitinho você fica quando parece tímido e no quanto seria ótimo ficar imprestável com você.

Eu queria ter dado em cima de você, só pra ter conseguido tentar, mas acabei só dizendo que você mentiu e que eu estava decepcionada.

Muito apropriado, é claro.

Não consegui seu whatsapp. Só consegui, de novo, manter intacto o meu platonismo insano.
Depois a louca é a Tati Bernardi.

P.S Quem mais escreveu um livro chamado Passatempos? Não, pera…

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