Carta a um ídolo

Naquele verão de 1982, você abusou. E embora a tragédia fosse anunciada, ninguém esperava ter que lhe acenar um adeus tão cedo. Aos trinta e seis, uma intoxicação por combinação de remédios deixou o mundo mais silencioso. Se ele, lá em cima, estava com enxaqueca e queria um pouquinho de silêncio nas bandas aqui de baixo, por que simplesmente não apertou o “mute”?, eu me pergunto, tentando, em vão, entender um fenômeno que não tem muita explicação. Ou melhor, que não tem nenhuma explicação.

Eu sequer cheguei a te conhecer. Quando você se foi, eu ainda era duas – um óvulo de mãe e um espermatozoide de pai. Mas, aos seis anos, com os primeiros cinquenta reais que eu ganhei de aniversário da minha também falecida e também saudosa avó, fui à loja de discos e comprei uma fita cassete sua. Luz das Estrelas. Original. Custou dez reais. Como todo fã principiante, confesso que fiquei um tantinho frustrada por ter ouvido a fita de cabo a rabo – ou melhor, lado A e lado B – e não ter achado o seu grande sucesso. Sim, aquele que toca nas rádios e nas festinhas de música brasileira até hoje. Mas com um pouquinho de paciência, engoli a frustração, decorei meia dúzia de músicas suas e cantei uma delas num almoço de domingo na casa da minha outra avó, pra toda a família ouvir. Acho que foi Lennon e McCartney. Imagino que tenha sido ridículo, patético ou algo do gênero. Mas todo mundo aplaudiu.

Talvez, uma das maiores frustrações que carrego comigo seja ter chegado tarde demais ao planeta Terra e ter perdido a oportunidade de te ver no palco. Ora se escancarando num sorriso voluptuoso; ora se escondendo por trás de uma cortina de lágrimas, como se realmente reclamasse baixinho atrás da porta. Ora cantando daquele jeito debochado, com preguiça de pronunciar esse monte de sílaba que as palavras têm; ora soltando aquela voz magnífica que me faz, sem titubear e desde que me conheço por gente, colocá-la na nuvem mais macia do Olímpio dos intérpretes. Ora em pé, curvando o corpo para trás daquela maneira tão peculiar, como se o trem azul tivesse acabado de passar a mil por hora; ora sentada, cabisbaixa e resignada ao próprio sofrimento.

Porque você sofria. A gente sabia que você sofria. E eu gosto de gente assim, intensa. Que não esconde quando gosta e que geralmente, quando diz que odeia, o diz da boca pra fora. Que se desfaz em lágrimas ao mínimo sinal de dor e se refaz em gargalhadas quando a tormenta vai embora. Sina de gente intensa essa coisa de chorar demais, de rir demais, de amar demais, de se expor demais, de se doar demais. De se doer demais. De morrer aos poucos e de renascer aos muitos. De “viver como kamikaze”, como você costumava dizer.

Descobri outro dia que você, a maior de todas, era baixinha. Menor do que eu. Um metro e cinquenta e três, a altura da minha mãe. E pensei: ponto pra nós, as pequenininhas. Que, a despeito do tamanho diminuto, podem mover terras e céus. Podem carregar a dor e a alegria do mundo num peito só. Podem, enfim, ser gigantes. E ser gigante, mulher, foi o que você soube fazer de melhor.

Certa vez, um trombonista que a conheceu pessoalmente e que teve a oportunidade de tocar no mesmo palco que você me disse: não sei exatamente o que é, mas você tem algo da Elis. E eu me senti uma mulher linda. Mais linda do que nunca. Mas, afinal, o que é que eu tenho de você? – me pus a pensar. A voz eu sempre soube, com muito pesar e pouca esperança, que não era. Tampouco o olhar – porque o seu, apesar de lindo, era vesgo. Talvez a intensidade, talvez o cabelo curtinho, talvez a emotividade, talvez esse negócio de viver à flor da pele. Ao que ele, num tom de voz aliviado, completou: acho que é o sorriso.

E mesmo que fosse o branco dos olhos, Elis. Mesmo que fosse o branco dos olhos já me teria valido a pena.

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