E agora, quem destruirá os meus chinelos?

Quando pisou em casa pela primeira vez, ela, minha querida Juli, não media mais do que quinze centímetros. E já era imensamente linda! Logo destruiu o primeiro chinelo e me mostrou, na prática, o quanto o olhar amedrontado de um filhote é capaz de amolecer corações e de enfraquecer o desejo de disciplinar: dei bronca com voz bem mansinha (temendo assustá-la e fazê-la tremer como acontecia a cada trovão, rojão e sermão) e desferi dois “tapinhas de festim” que, certamente, seriam incapazes de destruir a mais delicada das pétalas. Confesso: sou do tipo que tem medo de dar banho em bebês e que sente pavor quando ouve a palavra “moleira”.

Eu amava a cara de carneirinho dopado que ela fazia quando eu a presenteava com um caprichado cafuné. E, definitivamente, achava que o fato de ela ser prognata (possuir o maxilar inferior proeminente) fazia dela a mais charmosa das cadelas do bairro em que morávamos. Sabe como é, né? Os nossos filhos e filhotes, por mais feios, tortos e queixudos, sempre nos parecem mais belos do que todo o resto.

Porém, mesmo achando a Juli uma belezura sem fim, eu permiti que a minha insegurança adolescente me impedisse de fazer algo que hoje, se existisse uma nova oportunidade, eu não hesitaria em realizar diariamente: leva-la para caminhar (e defecar) sobre as calçadas da vida. “O que as pessoas vão pensar de mim quando me flagrarem segurando a coleira de um poodle com lacinho rosa?”, eu pensava, quando tinha doze anos – momento da vida em que eu também morria de vergonha de ser visto beijando o meu pai. Quanta besteira, né? Mas era assim que eu, menino extremamente preocupado com a opinião dos outros, pensava.

E foi justamente em um dos tantos passeios que eu, por vergonha boba, não presenciei, que ela comeu um pouco de veneno de formiga que havia sido displicentemente aplicado sobre o jardim do prédio vizinho.

Foi um dia horrível: assim que eu cheguei do colégio, meu porteiro, com voz afoita, disse-me: “Aconteceu algo com a sua cachorrinha e parece que foi coisa bem séria!”. E o rosto inchado da minha mãe, primeira coisa que eu avistei depois de ter ofegado na entrada de casa, não desmentiu aquilo que, infelizmente, não era mais um dos boatos contados pelo Renato.

“O veterinário fez de tudo, mas ela, por ser muito fragilzinha, não aguentou, meu filho. O pescocinho dela estava molinho e a coitadinha não conseguia nem ficar de pé”, minha mãe me disse, em tom de desabafo e tentando, através do uso exagerado de diminutivos, amenizar a dor que eu, obviamente, sentiria após aquela péssima notícia. E eu senti. Senti falta do que arranhava as minhas canelas e enchia de pelos as minhas calças. E nada foi capaz de conter as minhas lágrimas, nada! Como é que um simples “Não chore, pois a vida é assim!” pode anestesiar a dor de um membro da família recém-amputado pelo acaso? Nem mesmo a vergonha que eu, naquela época, tinha de chorar publicamente, foi capaz de impedir que a minha tristeza virasse água salgada, água parecida com o líquido que preenche os mares que ela nunca entrou e  que nem sequer viu de perto.

Naquele dia cujo azul do céu não serviu para afugentar o meu cinza, eu chorei e, pela primeira vez, senti-me violentamente arrependido por não ter passado mais tempo com a pequena Juli. Eu, pelos olhos, desidratava, e pensava: “Se fosse preciso e possível, para trazê-la de volta, eu, sem pensar duas vezes, trajaria apenas uma calcinha fio dental e passearia com ela por toda a cidade, por anos. Meses, talvez!”, porém, tristemente, nada trará de volta o bem-estar que me invadia quando eu – graças ao som que as patinhas dela faziam quando trotavam suavemente sobre o chão de madeira – percebia que ela estava se aproximando de mim e que, com lambidas, mendigaria carinho na barriga.

Hoje, 16 anos depois, eu ainda sinto duas coisas: uma porção de saudade maior do que a felicidade que a Juli demonstrava ao me receber, como sempre, de patas abertas e vergonha da vergonha que eu um dia tive.

A vida é assim, infelizmente feita de “tchaus” nunca ditos e de coleiras empoeiradas e propositalmente esquecidas no fundo de alguma gaveta.

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