É só amor

Depois de filas, bancos e outras burocracias tirei meia hora de folga pra colocar a minha vida em ordem. Contas pagas, boletos impressos, contratos assinados e chegava a mais temida hora: a costureira. Desde que cheguei na cidade, eu sempre frequentei a mesma senhora para consertar e encurtar minhas roupas. O mau-humor da Dona Adélia não era nenhuma novidade, mas me causava calafrios sempre que eu chegava ao portão de sua casa.

Minha surpresa foi enorme. Enquanto eu esperava ser mal recebida por uma senhora ranzinza e amargurada, Dona Adélia me atendeu sorridente e simpática. E as agulhas iam e vinham, e enquanto ela media a exata medida que tinha que ficar a minha cintura, os olhos dela brilhavam como os cabelos, recém pintados e as unhas, minuciosamente feitas.

“A senhora tá gata demais, o que tá acontecendo?”. Ela sorri, inclina a cabeça para o lado e diz, baixinho, “estou namorando”. “O queeeee?” – brinco, faço piada. Cada tom que a pele dela enrubesce, é proporcional os milímetros que o sorriso cresce. Ela estava simplesmente radiante.

Dona Adélia nunca foi das pessoas mais quietas do mundo. Mesmo brava, ela esbravecia seus xingamentos a rodo. De repente, ela falava baixo, suave. E não parava um instante sequer. E eu não sabia que o bom-humor dela podia ser tão bonito.

Ele e ela se conheceram na infância, quase adolescência. Os pais dela mudaram de cidade e o romance terminou. Eles nunca mais se falaram, um rompimento de verdade. Ela se casou, teve uma filha. Ele também. Ela ficou viúva há anos e nunca sequer cogitou namorar de novo, “a não ser que alguém de quem eu gostasse muito viesse no meu portão me pedir em namoro”. E foi o que ele fez: a procurou e foi até o portão dela, num dia qualquer que mudou o humor da Dona Adélia pra sempre.

Ela sorria, e eu me emocionava. Ela gargalhava e meus olhos chegavam a quase lacrimejar. Dona Adélia, a velha ranzinza, era só alegria. Eu tinha vontade de fotografá-la. Eu a enxergava antes, mas a via realmente agora.

Eu fui pra casa e Dona Adélia ficou no portão, sorrindo. Lá onde ele tinha ido procurar por ela. Na próxima semana, faço questão de deixar pendências burocráticas e buscar meu vestido. Vou aproveitar para pegar também um pouco da leveza que o mundo pode ter, e a Dona Adélia também. É só amar.

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