Ela não é puta, é racista: um texto sobre o caso da torcedora gremista

Mesmo antes de saber o quanto cada preconceito era nocivo, já me recusava a aceitá-los. Lembro-me de rebater piadas racistas com a sinceridade inocente de uma criança, quando algum tio do pavê tentava ser engraçado perpetuando a segregação racial. Naquele tempo, eu não entendia muitas coisas, mas o que eu menos entendia era a razão pela qual o mundo elegera uma cor para considerar mais bonita, se bonitas mesmo são as diferenças. Porque elegeram um povo que acreditavam não merecer respeito. Um tipo de cabelo que acreditavam não poder ser mostrado. Era tudo absolutamente ininteligível para mim e, por mais incrível que pareça, ainda o é.

Hoje – mesmo que a sinceridade inocente já me tenha abandonado – ainda digo a qualquer tio do pavê, com todas as letras, que racismo não é engraçado. Não é aceitável. É repugnante. Arcaico. Nojento. Intragável.

E, por mais anos que tenham se passado, juro que ainda sinto uma mistura de repulsa e incompreensão – no sentido literal da palavra – quando presencio um comportamento escrachadamente preconceituoso como a da infeliz torcedora gremista. Que, provavelmente, não sabe absolutamente nada a respeito do povo negro e, pior ainda, não sabe absolutamente nada sobre ser humana. E como são lamentáveis os seres humanos que não sabem sê-lo.

Essa torcedora é o tipo de gente que poderia – porque qualquer um pode – livrar-se da ignorância que a faz crer estar em uma condição superior a outros seres humanos diferentes dela. Mas em um mundo em que o preconceito é tão comentado e tão rechaçado, racismo não é mais uma questão de ignorância. É desvio de caráter mesmo.

Por mais incrível que possa parecer, a reação popular ao ver aquele vídeo lamentável me soou ainda mais preocupante que a própria atitude racista da torcedora. Não que eu tenha colocado racismo e machismo na balança – porque ambos são igualmente preocupantes.

É que, ao expressarem sua revolta com adjetivos como “vagabunda, piranha, vadia” ou frases de ira como “merece ser estuprada por um negão”, as pessoas simplesmente legitimaram o preconceito. E muito pior do que ser preconceituoso é sê-lo pensando estar exercendo um direito. Criar justificativas para os nossos podres preconceitos é o primeiro passo para que, num futuro que espero que jamais chegue, nos orgulhemos dele.

O pior ainda disto tudo é um preconceito que mata sendo perpetuado por pessoas que, curiosamente, pensam estar se defendendo do próprio preconceito. Pessoas que se colocam num lugar de “justiceiros sociais” e, em vez de trilhar um caminho de combate sério ao racismo, destilam sua ira ignorante com meia dúzia de insultos ao comportamento sexual da repugnante torcedora, sobre o qual nada conhecem, deixando de lado a questão principal que o ato público, racista e criminoso dela.

É preocupante pensar que as pessoas ainda consideram natural julgar qualquer mulher pelo seu comportamento sexual, por mais que haja milhões de outras coisas piores a serem julgadas. Enxergam a mulher como ser passível de opressão de tal forma que nem mesmo as características humanas – ou, neste caso, anti-humanas – são colocadas em questão. A violência grita mais alto.

Se uma agente política é corrupta, é vagabunda. Se uma professora é mal-humorada, é mal-comida. Se uma mãe maltrata seu filho, é piranha. Se uma torcedora é racista, é puta. Esquecem-se da corrupção, da falta de caráter, da incompetência, da ignorância, do preconceito – e voltam seus olhos, como há centenas de anos atrás, ao comportamento sexual que precisa ser julgado, mesmo sequer sendo conhecido.

Escrevo isto porque acredito na capacidade do meu público para compreender que eu não pretendo defender a atitude da gremista. A questão aqui não é estar certo ou estar errado – o erro é óbvio, e nós não temos tempo para o óbvio. A questão aqui é como combatê-lo – e eu lhes garanto que chamá-la de vagabunda não resolve.

Ela não é vagabunda. É racista. Ponto. Compreendamos que há ainda muitos comportamentos humanos que urgem em serem combatidos, e o que a mulher faz com seu próprio corpo não é um deles. Concentremo-nos no que interessa, pois um preconceito não justifica outro.

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