Em nome do pai, do filho e do tiro

Entre ontem e hoje o Brasil viveu uma experiência diferente ‘no Facebook’. Devido ao ‘roubo da hornet’ sucedido de dois tiros, grande parte dos interessados em mudanças estão discutindo o assunto. E não falamos de mudanças apenas sob um ângulo. Há pessoas que tendem a compreender o contexto e pessoas favoráveis à pena de morte devido a experiências pessoais traumatizantes, em assaltos, assassinatos, etc. Esse conto não fecha uma opinião sobre o assunto, mas levanta o debate e as possíveis causas para taxas de criminalidade cada vez mais altas no Brasil.

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Em uma favela acostumada com barulhos perturbadores e cores violentas, um dos choros daquela noite era de Tragédia, um bebê de três meses. Sua avó corria para esquentar o leite enquanto alguns vizinhos provavelmente já acordavam com o choro tão estridente.

Mal deu tempo de o leite esfriar e, aos cinco anos, Tragédia viu seu pai ser esculachado e capturado pela ROTA, a polícia de São Paulo que equivale ao BOPE. Dona Marcelina – avó do garoto – nunca havia contado a profissão do pai: Artigo 157. Resumo: Ladrão.

A grana que comprava o arroz de Tragédia vinha dos assaltos: jóias, carros e celulares. Edivaldo, o pai preso, nunca abandonou o filho. Quando sua namorada foi assassinada, ele jurou vingança.

De inimigos ele estava rodeado: Toda espécie de policial, facções rivais e sociedade. Não foi sempre assim. Aos treze anos Edivaldo ainda estudava. Era um dos alunos mais aplicados daquela sala de aula vazia. Seu pai, um rígido e honestíssimo gari se orgulhava de ver que o filho não tinha caído na criminalidade que já começava a comer solta, mesmo dentro da favela.

De traumas eles eram abastados. Um dos dias mais marcantes na história de Edivaldo foi quando percebeu que viver não era coisa simples. Estava caminhando pelas calçadas junto a seu pai, Sebastião. Haviam acabado de sair da padaria; cinco pães e dois litros de leite eram tudo que carregavam. Qual não foi a surpresa de Edivaldo, ainda adolescente, quando percebeu: as pessoas simplesmente não cruzavam com eles. Duas mulheres e um adolescente atravessaram a calçada antes de darem de frente com Sebastião e o filho.

Edivaldo, contrariado, comentou :

– Por que esses filhos da puta fica achando que nóis vai roubar?

– Fica tranquilo, meu filho. É assim mesmo.

Sebastião já estava calejado com o pré-conceito. Nas ruas ele percebia alguns olhares de superioridade, de julgamento. Mal sabia Tião que, anos depois, um apresentador de televisão diria que ‘é uma merda quando a classe mais baixa na escala do trabalho – gari – quer dar feliz natal’. – Boris Casoy foi o filho da puta que afirmou isso.

Edivaldo achou que algo estava muito errado. Aquilo o revoltou profundamente e começou-se a criar um processo muito perigoso na cabeça dele. Da noite para o dia decidiu largar a escola. Perdeu a vontade de estudar e cada vez mais admirava amigos de dezessete ou dezoito anos que já tinham armas e mulheres. Que, mesmo com fuzis no quarto, jogavam vídeo-game, tinham um Nike, objetos que eram moda entre os garotos que não tinham a favela como cenário cotidiano.

Com a mudança do filho, Sebastião – chucro e triste – decidiu ser brutal. Espancou Edivaldo até sangrar. Era uma tentativa desesperada e irracional de não perdê-lo. O garoto guardou as marcas em silêncio, saiu de casa e não voltou mais. Seu sustento agora era a venda de drogas. Ele já conseguia manter um barraco e, vez ou outra, levar algumas garotas para lá.

Numa dessas transas em sofás embolorados, Edivaldo engravidou Luciana. Garota bonita que ficou molhada quando percebeu o poder que o ‘neguinho preza’ já ostentava. Ele tinha 15, ela tinha 14. Luciana desesperou-se ao notar: a menstruação estava atrasada. Não sabia quem era o pai; Edivaldo ou o padrasto que a violentava semanalmente.

Por medo do que poderia sofrer, Luciana foi procurar auxílio do jovem traficante. Ele desesperou-se no começo, mas foi homem. Disse, sem saber ao certo, o que aquilo realmente significava:

– Nóis vai ter esse moleque. E vai ser corinthiano.

– Como você sabe que é menino, Edi?

– Sabendo. Tem que ser moleque pra mim ensinar a manusear a peça, tá ligada?

Luciana estava com oito meses de gravidez quando cruzou com seu padrasto num beco qualquer. Ela havia fugido e se escondido, ele nunca mais a havia visto. Desesperado ao ver a menina com a barriga grande, ele puxou uma navalha que sempre o acompanhava. Desesperada, ela gritou:

– Não faz isso. A criança é sua. – Ela talvez mentisse para salvar o filho. Ele foi rápido na resposta:

– Mas é você que vai morrer, filha da puta, não ele.

Isaías passou a navalha sete vezes no pescoço de Luciana. Seu sangue tinha a cor viva da morte. Levada ao hospital, um médico de plantão conseguiu salvar a criança e realizou uma cesariana feita de qualquer maneira. Luciana não sobreviveria de qualquer maneira. Sua barriga foi aberta em dois minutos.

Ao ser comunicado que precisava ir voar até o hospital pois seu filho havia nascido, mas que sua mulher não tinha resistido, Edivaldo entrou no pior tipo de desespero que pode existir: o silencioso. Quando a enfermeira perguntou o nome do garoto para que o identificasse na pulseira, sua resposta foi direta, seu olhar não existia:

– Tragédia. Tragédia Drummond da Silva. – Em um desses acasos da vida, a jovem, agora morta, portava um sobrenome incompatível com sua realidade. Quem dera a vida a tivesse sido mais Drummond do que Silva.

O garoto, criado pela avó e sustentado pelo pai ladrão tinha marcas em seu corpo. Não de violência, não de maus tratos. Mas de coincidências terríveis. Tragédia tinha uma pinta grande na coxa esquerda. Assim como Isaías, padrasto de Luciana. Tragédia tinha um furo no queixo. Assim como Isaías. Aquele que poderia ser avô, também poderia ser pai. Edivaldo nunca soube dos abusos que Luciana, mãe do seu primeiro filho, sofreu. E nunca saberá. O pai do garoto nunca mais foi encontrado depois que a ROTA colocou as mãos nele. Talvez o casal agora cuidasse de seu filho lá do céu, talvez do inferno. Também há chance de suas almas terem desaparecido para sempre.

Tragédia ainda não sabe, mas sua vida será difícil. Sua avó vai tentar mantê-lo na escola, mas além de aquele ambiente não ser nada atrativo, ele terá que conviver com garotos cujos tênis  não vai poder comprar. Cujos abraços de pai, ele não vai receber. Livros não farão sua alegria. Na sua realidade, status é não ser preso. Sucesso é portar armamento de guerra.

O garoto ainda não faz ideia, mas não será nada fácil. Quando sua avó estiver já sem saúde e energia, o hospital vai tratá-la como um número como uma ficha com cheiro de papel reciclado. Quando o desespero e a dor de estar sozinho no mundo apertarem, Tragédia vai começar a sentir raiva de tudo. Dos amigos que tinham aquele tênis, daqueles que atravessaram a rua quando viram seu avô, dos que mataram seu pai, dos que sorriam enquanto ele chorava.

E, com tudo que fizeram na vida desse menino, fica difícil afirmar que a raiva não é a coisa mais natural de se sentir. O gatilho já ta puxado faz tempo. Vai ser difícil Tragédia ter piedade quando te apontar a arma.

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