Entenda o homem

Você deve ter achado curioso o título do texto. Assim, no singular. Mas é que hoje não falarei sobre o gênero masculino. Não é sobre eu preferir mulher com ou sem maquiagem, mulher ruiva ou morena. Hoje quero falar um pouco sobre o homem enquanto raça. Como ser humano.

Alguns – ou muitos – de vocês já viram as notícias da TV ou da internet de como têm sido as manifestações populares ao redor de todo o Brasil. A manifestação, inicialmente, tem como argumento o abuso na tarifa dos ônibus. Estive em um dos protestos, no caso, o protesto com maior número de pessoas até hoje. Também o mais violento.

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São Paulo, metrô Anhangabaú, 17h.

Assim que desci do metrô, me deparei com muita gente aguardando amigos nas catracas. A maioria era jovem, na faixa de 20 a 30 anos. Quando comecei a caminhar para o Teatro, vi que a polícia já estava abordando pessoas que estavam com mochilas. Quem portava sprays, maconha ou, acredite se quiser, vinagre, já foi detido nesse momento.

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São Paulo, Theatro Municipal, 18h30

Depois de mais de uma hora e meia de concentração em frente ao teatro, os líderes do movimento indicam o caminho que o povo vai tomar. Demos início à marcha e o que se via era uma grande alegria. Baterias, trompetes e trombones dando o tom em meio aos gritos de protesto. Alguns deles:
‘Vem pra rua, vem. Contra o aumento.’
‘Ôoooo, o povo acordoooou. O povo acordooou. O povo acordoooooou Ôoooo’

O apoio das pessoas que estavam nas ruas ou nos prédios era maravilhoso. Jornalistas filmavam e fotografavam, curiosos observavam; a maioria com um sorriso no rosto. Teve muito ‘tchauzinho’ e até chuva de papel picado. Nesse momento, diante de toda a minha inexperiência em guerras, fui inocente e pensei: ‘Nossa, hoje será tranquilo’.

A descida pela rua cujo nome não sei foi tranqüila até a Consolação. As cerca de dez mil pessoas envolvidas no protesto pararam em determinado ponto para aguardar o próximo passo. É aqui que começa verdadeiramente esse relato. Se você tem estômago fraco, não importa, continue lendo para entender a visão de quem estava lá e não aquela que o William Bonner vai te contar. A violência que foi iniciada pelos policiais nesse momento é esperada apenas dentro de presídios, contra bandidos em rebelião.

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São Paulo, Avenida Consolação, 19h

O grande objetivo da polícia militar de São Paulo era evitar que nós chegássemos à Avenida Paulista. Esse grande símbolo de São Paulo ao redor do Brasil e do mundo inteiro. Segundo o governador de SP, Geraldo Alckmin, o objetivo era garantir o ir e vir das pessoas, além de assegurar o patrimônio público e privado.

Agora eu vou te contar porque esse argumento soa como piada; e, vou dizer: uma piada muito sangrenta. Primeira coisa; a polícia fechou a Paulista para evitar que os manifestantes fechassem a Paulista. Faz sentido para vocês?

Segunda coisa; é um absurdo usar de argumento a proteção de qualquer tipo de patrimônio quando não se está NEM AÍ para as pessoas. A polícia não revidou ataques de manifestantes. Repito: A polícia militar do estado de São Paulo não revidou ataque algum. ELES ATACARAM.

Com um forte esquema, contando com o helicóptero Águia para apontar os caminhos que o protesto tomava, eles iniciaram o lançamento de bombas e balas de borracha quando perceberam que já estávamos próximos demais da Paulista. Ficamos acuados em um posto de gasolina enquanto alguns mais corajosos tentavam revidar exibindo flores aos policiais. Que agressivo esse povo com flores na mão, né?

Essa foi a hora que todos iniciamos o grito ‘Sem violência’. Não fomos atendidos. Enquanto balas de borracha voavam para todos os lados e os olhos ardiam ao sentir pela primeira vez a força do gás, alguns muitos corriam e os gritos vinham de todas as partes. A maioria pedia calma, assim evitaríamos pisoteamentos.

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São Paulo, Rua Augusta, 19h20

Aí houve a primeira dispersão. Parece-me que os 10 mil foram divididos em dois nessa hora. Não sei dizer se foi em mais. Eu fiquei com o grupo que continuava tentando subir para a Paulista. Mal sabíamos nós que nesse momento a Tropa de Choque estava fechando todos os acessos para lá. Em breve teríamos o azar de descobrir isso do pior modo.

Nessa hora de ‘reorganização’ e descanso, viam-se os primeiros resultados da ofensiva. Gente desesperada atrás de vinagre. Aliás, deixem-me explicar: Vinagre serve para aliviar as vias respiratórias quando a única coisa que se respira é gás lacrimogêneo. Vou falar a real: alivia pra caralho. Essa foi a hora em que começamos também a perceber as primeiras pessoas com marcas de balas de borracha.

Os cânticos de protesto não paravam. Agora, depois da primeira ofensiva, o grito mais forte e mais alto era ‘Sem violência. Sem violência.’

Ouvíamos barulhos de bomba o tempo inteiro. Isso fazia com que diversos líderes surgissem e dessem pitacos no melhor caminho a seguir. O caminho decidido foi voltar para a Avenida Consolação. Assim que pisamos lá, percebemos que a avenida estava interditada e as sirenes ao fundo eram muitas. ‘Hummm, cheiro de emboscada’ – pensei na hora. Não deu outra. Assim que começamos a subir, indo em direção aos policiais – e aqui o objetivo não era enfrentá-los, mas um protesto não baseia-se em fugir da polícia. Se fosse assim, viraria caça. E foi isso que virou sem percebermos – recebemos uma CHUVA de bombas.

Uma noção BASTANTE reduzida do que vou relatar a seguir:

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São Paulo, Avenida Consolação, 19h40

Conforme vieram as primeiras bombas lá do topo da avenida, as pessoas começaram a descer correndo. Homens, mulheres, casais. Gente de todo tipo. De todas as tribos e ideologias. Todo mundo tentando fugir do caos. Havia os claramente metaleiros, pessoas com dreads, skatistas, patricinhas e playboys, alternativos estudantes de história na USP. Vi uma pessoa que me pareceu muito com um skinhead. O paulista e paulistano, como um todo, unido por um ideal, separado por uma polícia despreparada. As bombas continuavam a descer e mais gente tentava escapar como podia.

Qual não foi a surpresa quando percebemos que, na descida, surgiu um ônibus da Tropa de Choque, além de cerca de dez homens com escudos. Eles estavam nos esperando com mais bombas. Pronto. Estávamos encurralados.

Perdi a conta de quantas bombas de gás foram lançadas sobre nós. Além das bombas de efeito moral; que fazem um barulhão e ajudam a assustar e desorganizar os grupos. Chuto que umas 15 bombas de gás nos cercaram. Essa foi a hora que o meu grupo – cerca de 800 pessoas – sentiu todo o peso daquela noite. Os olhos ardiam a ponto de ficarmos parcialmente cegos por segundos. A respiração ficava impossível. Sério, arde TUDO de um jeito absolutamente, sei lá, ardente. Desculpem-me a piada. Só rindo pra não chorar. Todos tossindo e engasgando. Muita e muita gente gritando ‘acho que vou desmaiar’. Para aliviar, eu lambia o vinagre que foi molhado na minha camisa. Assim, como um animal. Vi gente virando vinagre quase em um gole só. Pensei que desmaiaria. Não enxergava nada, não conseguia respirar. Achei que três minutos daquilo ali seriam suficientes para derrubar todo mundo. Não foi. Aguentei. Aguentamos.

Quando conseguimos sair dessa cilada, vi essa cena aqui. Prefiro que vejam ao invés de eu precisar descrevê-la.

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Sabe qual era a arma dos manifestantes de joelhos? Flores e pedidos de ‘sem violência’.

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São Paulo, Avenida Sei lá, 20h30

Nessa hora não preciso nem dizer que o grupo se espalhou ainda mais por São Paulo. Conforme os grupos iam diminuindo, o medo aumentava, porque havia uma dúvida no ar: será que eles vão deixam pra lá os grupos pequenos ou vão é descontar toda a raiva?

Conforme subíamos a avenida em direção a qualquer via que nos levasse para a Paulista, alguns tentavam parar os carros para ‘dar força ao movimento’. O que vi nessa hora foi apenas a instabilidade emocional do paulistano. Poderíamos ter perdido cinco ou seis vidas só nesse momento. Os motoristas aceleravam insanamente. Fiquem tranqüilos, senhores donos de SUV’s, eles não tinham a intenção de estragar o carro de vocês. Já não posso dizer a mesma coisa sobre a intenção que vocês tinham de atropelá-los. O nosso alvo não é o cidadão que trabalha. Seja ele rico ou pobre. O alvo dos protestos é o abuso de poder dos governantes.

A conclusão da coisa toda é uma só: só dá pra ter uma ideia do que acontece lá, estando lá. O governador vai falar. O Datena vai falar. O Jabor vai falar. Duvide de tudo e de todos. Acredite nos vídeos que estão caindo na internet. Acredite nas marcas de sangue daqueles que tomaram bala de borracha no corpo. Agora reflita: qual imagem te dói mais? Com qual patrimônio você está mais preocupado? A agência do seu banco ou o futuro justo de um filho teu? Te preocupa mais uma caçamba pegando fogo ou ser feito de imbecil e otário por uma politicagem que já testa nossos limites há muito tempo?

Como eu disse em um texto anterior, revolução não se faz tomando mingau e abraçando árvore. Sim, estamos tentando revolucionar algo. Desculpem o transtorno para quem passou horas no trânsito, estamos tentando mudar o país.

Particularmente eu continuo com a minha opinião de que os policiais estão ali puramente por mando de alguém mais forte. Eu não gritei nenhuma vez os cânticos que incitavam o desrespeito ao policial. Não por medo. Não MESMO. Mas é porque ali é gente recebendo ordem que, claro, quando sente que pode não conseguir fazer seu trabalho dar certo, também parte para a violência. Aí que está o erro: policial não pode se descontrolar. Não tem o direito. Policial não pode ceder às emoções em uma situação como essa. Policial não pode atacar gente que grita ‘sem violência’. Quem mandar fechar as ruas é que manda na porra toda. Quem usa como argumento a proteção do patrimônio e garantia do direito de ir e vir que, além de ser contraditório, como expliquei lá em cima, é um absurdo.

Vocês viram pela televisão e pelo YouTube como realmente aquilo tornou-se uma guerra. O medo ele existe. Ele é real. Mas, escrever com calma um relato desses, passado o momento de fúria, é um orgulho. Fui dormir com gás lacrimogêneo correndo nas veias, mas, eu sabia, e foi assim, acordei com um sorriso de satisfação por ser dessa geração. De alguém que nunca mais vai precisar ficar quieto quando ouvir ‘ah, brasileiro não levanta a bunda do sofá’.

Saímos do Facebook. Ou melhor, demos um tempo dele para guerrear – sim, foi uma guerra – por um Brasil mais justo, cujo povo seja menos passado pra trás. Afinal, essa ferramenta maravilhosa que o Mark criou pode mostrar ao mundo quem estava errado ontem.

O brasileiro descobriu que a tatuagem escrita ‘OTÁRIO’ no meio da testa é feita de henna, dá pra apagar. Só tenho uma coisa pra dizer: Segura. Nós – os ex-otários – não vamos parar tão cedo.

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Olha como nossos governantes gostam de garantir o ir e vir e a proteção do patrimônio:

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Entenda o homem

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http://youtu.be/XynV7AYbGDE

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