Eu podia ter feito tudo antes

Eu tenho que escrever um texto pra entregar em três horas, então resolvi tomar um café pra agitar a cabeça. Que droga de café forte que eu faço. Queria minha mãe aqui, porque ela sabe a medida certa que eu gosto, ou eu aprendi a gostar assim porque me acostumei. Eu tomo café em uma temperatura específica – nem pelando nem gelado (gelado só com leite) – então acabo tendo pouco tempo pra beber, existem esses poucos segundos da temperatura ideal e, depois disso, ele esfria de um jeito que parece chá de terra molhada de chuva. E sempre deixo uma borrinha no fundo que nunca prevê meu futuro, só a minha irritante mania de deixar chorinhos de líquidos em copos, xícaras, latas e garrafas, exatamente como faço com cervejas que esquentam em uma determinada hora da festa.

Café tomado, encho outra caneca para me acompanhar ao lado do computador e bebericar sempre que penso em uma palavra melhor. A primeira frase geralmente vem forte, quando vem. Mas não hoje. E deu a maior vontade de fazer xixi e o banheiro tá pertinho, pertinho, então vou lá e já volto. Aí começo com tudo. No banheiro, qual cabine escolher? Não aquela com acentos fechados, nem aquelas com lixo transbordando, não também às cabines falsamente trancadas (pessoas simulam isso para que não entrem logo após serem usadas). Escolho sempre a cabine escancarada, com cheiro de hidratante de alguém, porque isso me faz pensar que tenho que comprar mais daquele hidratante de farmácia, que só ele resolve meu problema de pele seca no inverno.

No espelho, meus olhos parecem cansados e a máscara de cílios já assombra as minhas olheiras, um pouco de água resolve.

Voltando à sala, voltando ao texto. Tenho um pouco mais de duas horas para enviar e meu celular não para de tocar. Amigos mandam mensagens que não mudarão a minha vida, mas eu gosto de mensagens que nascem sem propósito, então dou leve atenção a todas com a cínica esperança de alguma delas me trazer a frase forte, aquela pra startar o texto. A primeira frase dita o tom, as regras, o tamanho e a profundidade de tudo que vai preencher aquela página. Às vezes vem o título, mas geralmente é a frase de impacto.

Esqueci de acessar um site que me leva pra um ambiente de uma cafeteria. Uma pesquisa diz que escrever ouvindo barulho de uma cafeteria, como a Starbucks, deixa você mais focado. O problema é que esse áudio fica em looping e sempre tem uma mulher gritando Yeah três vezes, outra seduzindo um cara com um “You will kiss me” e é inevitável parar tudo o que estou fazendo, nesses dois momentos, para, um, gritar yeah junto e, dois, dublar a frase da paquera.

Deixa eu salvar este texto antes que a luz acabe por aqui e eu perca tudo o que comecei. Arquivo. Salvar Como. Pasta Pessoal. Textos. Blog. Qual o nome deste texto que nem comecei? Melhor não salvar no blog, por que é um frila. Voltar. Frila. Quer dizer, e se isso entrar no livro também? Como vou fazer pra achar depois esse arquivo, já que ele ainda não tem nome e qualquer coisa que eu invente, não vá mais ser gravado na minha cabeça, porque só vou me lembrar de que é o texto que enrolei pra escrever. Salvo no desktop que tá bom. (Yeah, yeah, yeah)

Vou configurar a página, porque não gosto de escrever em A4. Divido a página pelo meio, assim parece que estou escrevendo um best-seller. Assim viajo que cada texto meu um dia vai fazer parte de um livro que vai viver até a Terra explodir. Uma mensagem da minha mãe! Péra aí que essa eu preciso responder. Ela tá viajando e quero  dizer a falta que sinto do café que ela não me fez hoje. Celular lerdo. Preciso trocar, mas tô sem grana. Esse frila vai me pagar o suficiente pra comprar dois, mas lógico que não vou comprar dois. Quem precisa de dois celulares? Pensando bem, não vou trocar agora, não. Oi, mãe. Como está a viagem? Droga, o café esfriou e não tomei um gole dessa xícara. Vou lá ao banheiro pra jogar fora. Quatro das Cinco cabines ocupadas. Me abaixo para ver os sapatos das pessoas que estão ocupando. O sapato fala mais sobre uma pessoa do que a profissão dela, você sabia? Por exemplo, sapatilhas com laços e glíter pertencem a pessoas infantilizadas. Pode sair por aí checando.

Na sala de novo, sem café agora, porque acabou – o estagiário toma muito. Menos de uma hora pra enviar esse maldito texto que não comecei e sei que não estou próxima dele acontecer. Aquele desespero que só os prazos nos trazem. Mas aí o telefone toca e é o chefe; e tenho que atender porque é o chefe; e ouvir tudo o que ele diz (mesmo não concordando vez ou outra) porque ele é o chefe; e terminar a ligação dizendo que sim, que consigo fazer em uma hora as alterações que ele pediu porque ele é o chefe; e vou fazer em uma hora, senão ele deixa de ser o (meu) chefe. Então o frila, a frase, o dinheiro que poderia me salvar este mês, o meu futuro, minhas férias vão ficar pra outro momento com café morno, a mulher paquerando em inglês, sapatilhas bobas nas cabines de banheiro, e minha conta excepcionalmente no azul. E eu vou dormir sabendo que a culpa é minha. Eu podia ter feito tudo antes. Ou eu podia ter dito não.

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