E o que sobra da vida?

A bala agora segue em minha direção. Meu crânio logo será rompido e meu fim, brigará por um décimo de página entre o caderno de política, a previsão climática e a tabela do brasileirão. Tenho um milésimo de segundo para decidir se todos os outros milésimos de segundo que gastei valeram a pena.

O projétil não para, rasga o ar, vem vindo pra cá.

Preciso pensar rápido. Tudo que vivi até aqui mereceu ser vivido? E aquilo que ainda nem vivi, como fica? Lembro que já fui dançarino incapaz, mentiroso por necessidade, apaixonado por gostar de estar, barrigudo por desleixo, menos barrigudo por menos desleixo, chorão por não conseguir segurar o choro, mágico pelo bem das crianças, escritor por necessidade, publicitário por dinheiro, humorista por apreço pelo riso e até espermatozóide por ser humano. Lembro que já escolhi um bistrô para tentar encantar e que já encantei numa mesa bamba de boteco. Lembro que ainda preciso lembrar-me de muita coisa, mas a bala vem vindo ali e o filho da puta que apertou o gatilho tem boa mira.

Penso na minha mãe, no meu pai, nos meus amigos e em todos que ficarão nesse mundão, sozinhos com esse monte de coisa nenhuma, mas agora a bala quase toca minha testa. Lembro daquele sol mergulhando no mar, daqueles olhos fixados no meu, daquele beijo que roubei dentro de um táxi, daquele frio na barriga, daqueles tantos amores que hoje não passam de passado. Lembro de querer viver de cinema e de desistir logo em seguida. Lembro das tantas vezes que me emocionei vendo “Brilho Eterno de Uma Mente Sem Lembranças” em DVD.

Lembro da boca que esperou quase um minuto para encostar-se na minha e daquele frio na espinha que há tempos não sinto mais. Lembro do arroz doce da minha avó, do cheiro de canela no ar, daquela dor atrás da orelha de tão doce, sabe? Lembro de ter vergonha de passear com meu Poodle na rua e de morrer de arrependimento quando ele faleceu abruptamente e eu, me dei conta o quão boba era essa vergonha. Lembro agora como os heróis de faroeste faziam nos filmes, à beira do capítulo final, prestes a cuspir sangue de mentirinha.

Posso pedir uma última música? “My Way”, mas precisa ser cantada pelo Sinatra, ok? Mais uma coisa, quero um temaki de salmão com cream cheese, pode ser? E por fim, peço que na minha lápide, escrevam: “Tudo isso, essa vida, esse sonho, esse texto imenso, não passou de ficção”, que tal? Ponto final.

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