Ovo mollet e a gourmetização dos sentimentos

É feriado e, depois de acordar tarde, foi tomar café um pouco mais tarde ainda. Não há refeição melhor do que o café da manhã para aproveitar a cabeça vazia (especialmente se você não for como eu, que geralmente sonho com problemas a resolver no dia seguinte) e pensar na vida. Lá na casa dos meus pais, dia feliz era ter “ovo com gema mole para pintar o arroz” no almoço. Aqui em casa, dia feliz é “ovo com a gema mole para pintar o pãozinho” no café da manhã.

Só que “ovo com gema mole para qualquer coisa” não é mais “ovo com gema mole”. É ovo mollet. O Masterchef invadiu a vida real e parece que nem o ovo se safou. Quem dirá os sentimentos.

“Deixar pra depois” virou procrastinação. “Não desistir” virou resiliência. “Esgotamento” virou síndrome de burn out. Os nomes são mais sofisticados, mas nós continuamos sentindo as mesmas primitivas sensações: o cansaço, o medo, a preguiça.

O estar de saco cheio mais puro e verdadeiro, que nada tem a ver com “não estar confortável e sem perspectivas na companhia onde se encontra”. É só saco cheio mesmo. Uma sensação pedra-bruta que não quer virar diamante. Não precisa de explicação, Google, Freud. Todo mundo acorda enjoado da própria vida de vez em quando, querendo simplificar tudo e tendo que encarar um almoço com ovo mollet.

E aí a gente acredita. Se joga nas palavras complexas e complica a nossa visão de mundo. Começa a confundir linguagem simples com olhar raso sem perceber que é na simplicidade que estão os mais objetivos e profundos dilemas.

Talvez esteja na hora de encarar que é melhor se preocupar em sentir mais e florear menos.

Porque se você for num restaurante, pedir um ovo mollet achando que é a coisa mais excêntrica que você poderia comer hoje e aparecerem com um “ovo com gema mole”, o melhor café da manhã do mundo pode se tornar uma decepção. Assim como a vida pode ser para quem cria expectativas demais e simplifica de menos.

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