Qual a medida da solidariedade?

Fico pensando em quando estou num velório e gostaria muito, muito de chorar, mas não consigo. Vamos levar em conta que um olho encharcado é um símbolo solidário, demonstra, faz acreditar, mas será que eu preciso mesmo chorar, eu quis dizer me forçar a chorar, só porque pega bem naquela ocasião? Pensem comigo: essa preocupação passa longe da solidariedade, é só alguma voz minha dizendo que eu preciso seguir um script que “atesta” moralmente uma atitude solidária.

De repente, eu não assisto as mesmas coisas que você, e a população de pessoas da minha timeline compartilha coisas que pra população da sua, não são prioridades. E então eu não soube, infelizmente não soube. Deveria saber, mas não soube daquela tragédia na Babilônia. Aquela que a mídia não cobriu. Aquela que você, sim você, que bom que você está me contando agora. Aliás, volto com uma pergunta ultrapassada: quem era Cristiano Araújo? Sem ironias, eu não sabia mesmo. Não sabia. Não chorei porque não sabia, e mesmo se soubesse acho que não choraria. Isso é maldade? Vejam bem. Pode ser frieza, talvez gosto musical diverso, mas maldade?

Agora esqueça a mídia, estou falando de indivíduos que portam, cada qual, um contexto de vida, de traumas, de escolhas, de injustiças. Existiria um critério para mensurar um sentimento, que surge ou não surge, e isso independe de um anúncio virtual sobre o seu surgimento? Vamos dizer que o sujeito faz doações pelo bairro todos os dias, mas não conta pra ninguém virtualmente, e de repente, se solidariza com as vítimas do ataque terrorista na Babilônia num post, mas simplesmente não tem vontade de compartilhar sobre um desastre natural em Pasárgada, mesmo se sentindo solidário a essa pauta também. Ele foi sim seletivo, infelizmente ele não correspondeu as suas expectativas, ele sentiu mais por um e menos por outro, ou falou de um, mas esqueceu do outro, mas ainda assim, sofreu verdadeiramente pela pauta que “escolheu”(?). Falar de seletividade num parâmetro midiático é uma coisa, outra, é acusar o seu vizinho, acusar alguém que por alguma distração (mesmo que induzida) não olhou pro mesmo lado que você. E tem horas que você pode mostrar, só mostrar, entende?

Ou, você acha mesmo que uma expressão de pensamento de timeline define o estado de espírito de um dia inteiro que uma pessoa viveu na vida prática? Sim, porque ela pode ter dado gargalhadas de uma piada maldosa, brigado com o ciclista no trânsito e ido até o Facebook dizer: “O mundo está doente”. Não se preocupem, ainda não tenho um drone que faça esse serviço, um detector de incongruências entre as atitudes na vida real e a prática na vida virtual, mas dizem que um dia vai ter esse app, o medidor de paradoxos. Coitado de mim, coitado!

Mas e a solidariedade?

Bom, solidariedade não é um discurso, não é a sua reza, é a intenção por trás da sua reza, é algo invisível. Vou dividir com vocês algo que eu cultivo nas minhas rodas de amizade: chama-se “fofoca do bem”. É quando alguém A fala bem de alguém B, eu faço questão de contar pra esse alguém B, sem o A nunca ficar sabendo. Cultivar conexões positivas, apenas isso. Tão pequeno, tão parte do meu microcotidiano, tão não fotogênico, que só eu saberei que fiz, e olha, isso é ego, eu sei, mas é gentileza também, ou não. Sempre vai ter alguém avaliando se você é oh-demagogo, se a sua oh-intenção era mesmo a primeira e não a segunda (aquela oculta que só você saberá). Sim, a sua gentileza vai sofrer fiscalização e se você for mesmo solidário, vai fazer mesmo assim. Acho que ser solidário é, em uma perspectiva visual, algo tão micro, tão telescópico, tão longe do nosso poder de avaliação, que “o que você faz fala tão alto que eu não consigo ouvir o que você diz”.

Oferecer a corrida de táxi sem cobrar no meio de uma tragédia, abrir a porta pra um desconhecido em uma situação de emergência social, recolher um lixo que não é seu, que você não sabe quem jogou, mas que você recolheu mesmo assim. Agora mesmo, enquanto estou aqui escrevendo sobre solidariedade, um monte de mortes silenciosas estão acontecendo, e eu talvez nunca fique sabendo, ou fique, mas estou aqui, escrevendo, usando um tempo em que eu poderia estar ajudando alguém, mas não estou, ou estou.

O mais engraçado: as pessoas mais solidárias que eu conheço entram bem pouco no Facebook, elas não fazem parte da Guerra Mundial dos likes. Mas solidariedade virtual existe, eu acredito, não sei de todas, sei das minhas, tão poucas. Não sei das suas, não precisa me contar. Solidariedade é fazer, mesmo sabendo que o outro não vai lembrar. O resto é barganha.

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