Superstição

Atravessou a rua no sinal verde – para os carros. Na frente de todos eles. Sem sequer se preocupar com a – não tão remota – possibilidade de virar carniça no asfalto. Ou de, como diria Chico, morrer na contramão atrapalhando o tráfego, o público, o sábado. E embora o perigo fosse iminente e provável, ficar do lado de lá da calçada não lhe fazia o menor sentido. Era aterrorizante, por sinal. Porque, do lado de lá, no meio do caminho tinha uma escada. Tinha uma escada no meio do caminho.

Passar por debaixo de escadas dá mau agouro, ela ouviu dizer por aí. Parece que o avô do namorado da irmã gêmea da vizinha morreu disso, de passar por debaixo de uma escada numa obra em construção. E ela não poderia de jeito maneira colocar a própria vida a perder. Afinal, tinha acabado de arranjar o emprego dos sonhos: ser repórter de moda de uma dessas revistas que custam quase a segunda parcela inteira do nosso décimo terceiro. E mesmo que a editora fosse insuportável, que a crise fizesse a empresa cortar algumas vagas ou que ela não desempenhasse conforme o esperado para a função, a culpa seria pra sempre da escada pela qual passara por baixo naquele fatídico 13 de janeiro.

Que, por sinal, havia caído numa sexta-feira. Sexta-feira treze, dia mundial do azar. Que acontece pelo menos uma vez ao ano, mas que, naquele ano, aconteceria três vezes. Três fucking vezes. O suficiente para que ela perdesse o namorado, batesse o carro e não conseguisse comprar ingresso pro show de despedida da sua banda favorita, que já anunciara a aposentadoria. Muita possibilidade de azar num ano só. O jeito era se blindar: pulseira de olho grego, anel de pimenta, gargantilha de pata de coelho…

Mas o bicho da vez era o gato preto que acabara de lhe cruzar o caminho. Sabe que gato preto traz azar, né?, a voz da tia avó não parava de ecoar na mente dela. Por que justo na frente dela? Por que? Tinha tantos caminhos que esse gato poderia fazer. Passar por trás dela, sem que ela sequer notasse; ir andando pelo beiral do muro, habilidade dos felinos que falta aos humanos; seguir por debaixo da escada que ela havia evitado ao atravessar a rua… Mas não. Ele fez o favor de passar bem em frente dela, no cruzamento da Mário de Andrade com a Victor Brecheret. O único remédio agora era tomar um banho de sal grosso assim que chegasse em casa e rezar para que não fosse picada por um Aedes Aegypti no caminho até lá.

Olhou no relógio para calcular por quanto tempo estaria sujeita ao mau agouro. Oba, eram 11h11! A oportunidade de pedir que algo de bom lhe acontecesse na vida. Ou melhor, a oportunidade de pedir que algo de ruim não lhe acontecesse. Temendo ser específica demais e correr o risco de cobrir a cabeça do defunto às custas de lhe descobrir os pés, fez um pedido bastante genérico e pouco objetivo: que eu seja plenamente feliz. Sempre e para sempre. Mandou um beijo para o relógio.

Certa de que todos os seus problemas estariam resolvidos depois do banho de sal grosso, seguiu para casa, onde entrou com o pé direito. Descalçou os sapatos e, quando foi enfim calçar os chinelos, … Meu Deus, eles estavam virados para baixo. Não podia ser. Desde as sete da manhã, horário em que saíra de casa. Tempo mais do que suficiente para que um assaltante entrasse na casa de sua mãe; trancasse-a no banheiro; levasse todos os seus bens; ouvisse, por detrás da porta, ela ligando para o 190 aos sussurros; e desse três tiros fatais nela.

Apoiada numa ponta de otimismo dos que dizem que notícia ruim chega rápido, pegou o telefone. Com a mão direita. Discou.

– Alô.

– Oi, mãe. Tudo bem?

– Oi, filha. Tudo certo. E com você?

Desenvolveu mais alguns minutos de conversa e desligou, respirando aliviada. Não fora hoje. Mas tinha certeza absoluta de que, um dia, a superstição estaria mais certa do que a razão. Para o bem ou para o mal.

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