Antes ele do que eu – e o conforto do nosso umbiguismo

Eu sorrio, mas carrego nos ombros toda a culpa do mundo. Escravidão, genocídio indígena, floresta Amazônica devastada. Tragédia do ônibus 174, atentado à boate Pulse, branco chamando preto de moreninho. De escurinho. De macaco. Acaba de entrar um moço no metrô. Entregando papeizinhos. Bom dia, caros amigos. Não quero incomodar, mas sou surdo-mudo, estou desempregado e preciso comprar leite para os meus irmãos. Qualquer trocadinho ajuda. Pés descalços, roupas sujas, cabelos raspados – pra não virar criadouro de piolho. O mau cheiro é nítido, é químico, é fétido – por mais que a gente finja que não sente. Como não poderia deixar de ser, fico penalizada. Se ao menos ele tivesse um pacote de balas para vender. Se ao menos ele pudesse falar. Se ao menos ele pudesse me ouvir.

Mas não. Ele é só mais um pra minha conta. Já virei a página e ainda não passei a risca. São parcelas que não acabam mais. São meus avós, que se despedem do mundo a cada dia em que acordam e não recebem muito mais de mim do que um abraço e um dedo de prosa por semana. São meus pais, que passaram noites em claro por mim, mas que nunca me tiraram um minuto de sono. São meus filhos, que sequer terão a chance de nascer. É o trabalho que paga as minhas contas e que eu faço reclamando. É a casa que não vê um pano úmido há semanas. É o carro que eu não tenho, é a vergonha que eu não tenho, é a paciência que eu já tive. É o cesto de roupas sujas, é a pia de louças sujas, é a boca de palavras sujas.

É tanta dívida que eu já nem sei por onde começar a pagar. Se a gente tenta ficar em dia com o trabalho, a gente esquece dos amigos. Se a gente tenta restabelecer as amizades como nos velhos – e bons – tempos, a gente negligencia o namoro. Se a gente tenta reaquecer o namoro, a gente fica em falta com a nossa individualidade. Se a gente tenta cultivar a individualidade, a gente é chamado de egoísta. Se a gente é egoísta, a gente é hedonista. E se a gente é hedonista, foda-se se o outro não goza.

Porque não importa o quanto a gente se encolher em posição fetal: o cobertor é curto demais. É pouco amor pra dar pra muita gente. É pouco dedo pra masturbar muita boceta. É pouco papel pra limpar muita merda. São poucas horas pra cumprir muitos compromissos. É pouca comida pra alimentar muita boca faminta. É pouca solidariedade pra resolver muito problema. É pouca boa vontade pra muito menino entregando papel. Pra muito menino pedindo dinheiro. Pra muito menino vendendo bala.

Então, a gente prefere deixar como está. Fechar os olhos e tapar os ouvidos, que é pra ficar mais cômodo. Mais confortável. Mais quentinho. Antes eles morrendo de fome do que a gente de remorso. Não é mesmo?

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