O dia em que eu aprendi que cuidar da minha vida é melhor do que questionar a escolha dos outros

por Bruna Grotti

São Paulo. Seis e meia da tarde. Trem lotado. O destino final era Osasco, mas 70% das pessoas desceriam em Pinheiros, também conhecido como batente da porta do inferno. Entre um cheiro de sovaco aqui e um torcicolo acolá, uma menina de vinte e poucos anos está no celular, furiosa.

– Só me diz uma coisa, Thiago: que horas ela enviou o documento pra você?

Pelo jeito, o Thiago titubeou. Ela esperou em completo silêncio, roendo as unhas, para então dar a rasteira que quase seria o nocaute.

– Se eu, a mulher com quem você vai casar, não sou a prioridade da sua vida, eu não te quero ao meu lado.

O “puuutz” foi coletivo. Se tinha doído até na gente, imagina no Thiago. A conversa continuou por mais alguns minutos. Ela, firme, articulada e sem indícios de lágrimas nos olhos, falava, ao que parecia, de uma situação em que tinha sido preterida. Ele até tinha chances de falar, mas aparentemente não estava convencendo. E então ela não perdoou:

– Quer dizer então que o dinheiro do desconto é mais importante do que eu? Bom saber. Tchau, Thiago. Não me procure mais.

E desligou o telefone. Na cara dele. Provavelmente, ele sofria do outro lado da linha. Que agora não era mais linha. Primeiro, porque a chamada havia sido encerrada. Depois, porque linhas geralmente ligam. E ela deu a entender que abdicava de qualquer ligação que um dia já tivera com o homem que tanto a enfureceu.

Os motivos eu não sei exatamente quais foram. Por isso, não tenho como julgar se a reação dela foi exagerada ou não. Mas o método… Ah, o método. Poxa, moça, precisava ter exposto o seu drama assim, no meio da multidão que não fazia nada a não ser ter que brincar de tetris humano para caber no vagão apinhado e arrancar os fones de ouvido para acompanhar melhor a triste saga do fim? Ou melhor: a sua triste saga do fim? E me pus a pensar em como a gente trata a nossa privacidade.

A gente tende a colocar a culpa nas redes sociais – sempre elas. Se o filho está distante da família, é porque não sai da merda do Facebook nem pra se sentar à mesa do jantar. Se a priminha foi mal na escola, é porque – olha que absurdo! – mal saiu das fraldas e já tem um smartphone pra mexer durante as aulas. Se falta gentileza no metrô, é porque todo mundo tá concentrado nos seus dramas ou nos seus gozos pessoais via Whatsapp. Se todo mundo sabe da vida da vizinha, é porque ela posta até os peidos que solta no Twitter.

Ok que as redes sociais têm muita influência na maneira como nós nos comportamos. Ok que a internet está mudando as relações interpessoais e a forma a sociedade se desenha. Até aí tudo bem. Mas atribuir às mídias sociais a culpa pela construção da sociedade do espetáculo… Bem, aí já é um pouco demais. Elas podem servir como catalisadores. Mas a superexposição, a falta de privacidade e confidencialidade frágil vêm bem antes da gente ter criado um perfil no Orkut. Isso tudo vem do tempo em que lavávamos roupa suja – literal e metaforicamente – no meio da rua. E que a estendíamos – como ainda hoje fazem os portugueses – num varalzinho pendurado do lado de fora da janela. E que colocávamos um som no último volume dentro do carro que era pra passar estremecendo a rua. E que beijávamos calorosamente nossos namorados na calçada de um bar.

A nossa mania de confundir público e privado é cultural. E a história da menina no trem é um claro exemplo disso. Bastou ela ter um motivo de fúria e um aparelho celular para evidenciar para as centenas de pessoas ao redor seu descontentamento com o namorado. E, em um trajeto de quatro estações, entreteve uma multidão ávida por gargalhadas e lágrimas, desdém e compaixão, euforia e calma. Uma multidão que precisa de uma história interessante para contar quando chegar em casa – assim como eu estou fazendo ao escrever esse texto pra vocês.

Como bom ser humano em processo de aprender a preservar a própria privacidade, eu fiquei me perguntando: não dava pra ter esperado chegar em casa, moça? A sua história me serviu como entretenimento, reflexão, exercício e pauta – muito obrigada. Mas não dava pra ter engolido o que quer que você estivesse sentindo no momento pra vomitar só na hora em que você estivesse num lugar mais tranquilo do que um trem da CPTM às seis e meia da tarde?

Acho que dava. Mas talvez não desse, né? Falar de fora é tão fácil… Só a gente sabe da nossa própria urgência. Só a gente sabe do calo que mais aperta. Só a gente sabe da ferida que mais sangra. Só a gente sabe que o nosso calcanhar de Aquiles não é necessariamente um calcanhar. Só a gente sabe quem a gente é e quem a gente deixa de ser a cada vez que expõe uma fragilidade. É a velha lógica da vida: cada um com seus problemas pra resolver. Cada um com seu cu pra vigiar. Cada qual com seu método.

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