Quando decidi que não viveria mais nós dois

Hoje, depois de tanto tempo sem sequer pensar que um dia existimos, passei por aquela rua que tem tanto a tua cara que até poderia ser batizada com o seu nome. É difícil passar por algumas ruas sem chorar. Era aquela em que passamos de carro enquanto eu fazia um cosplay fajuto e ébrio da sua personagem de desenhos animados predileta. Aquela em que eu passava todos os dias depois do trabalho para voltar à nossa casa, levando o nosso pão ou o seu leite com chocolate. Exatamente aquela em que passamos para voltar do nosso último show juntos, enquanto eu sujava o parabrisa do carro com minhas botas cheias de lama e você ria, pela quinquagésima vez, porque eu estava bêbada demais pra não pôr os pés no parabrisa.

Num intervalo de cinco tristes segundos, vi um filme da nossa vida. Vi a expressão exata dos teus olhos quando eu te fazia pedidos sem sentido numa madrugada qualquer enquanto me lançava do banco do carona sobre os seus braços. Vi a sua cara de reprovação contida quando, naquela mesma rua, eu passei rápido demais no quebra-molas enquanto você se dedicava à difícil tarefa de me fazer dirigir bem. Vi as suas mãos sobre a minha perna enquanto dirigia e assoviava, tranquilo. E me vi, novamente, pondo minhas malas no carro naquele fatídico dia em que nos despedimos. Me vi de novo trancando a porta da sala caótica e caminhando para uma vida desconhecida que eu não sabia sequer se me faria bem. Mas, você sabe, eu precisava arriscar.

Parece que se passaram mil anos desde aquele dia. E eu, felizmente, continuo pensando que fizemos a coisa certa. Mas mesmo as coisas certas doem, eventualmente. E foi impossível lidar com aqueles cinco segundos sem me sentir menos lúcida, menos feliz, menos completa, e perdida como nunca antes. Vi cair uma única lágrima dura e insistente, como uma flor que consegue brotar de uma rocha, e não tentei contê-la como tentara outrora. Ela era legítima. Era o grito que a minha alma precisava dar. E se há uma coisa que a vida me ensinou foi a não calar a minha alma.

Não significou um arrependimento amargo, uma mágoa frívola, um amor ainda latente. Era só aquela saudade que eu calei tentando emergir. Era aquele medo que eu matei de fome querendo entrar à força de novo.

Virei a esquina e aqueles cinco segundos passaram. Eu olhei à minha frente. Havia outra rua. Outras pessoas, outros quebra-molas, outras lembranças; algumas já feitas e outras por construir. Sorri aliviada, como num filme de drama barato, e coloquei de novo os meus pés no chão. Recolhi todos os pedaços que eu havia deixado naquela rua e guardei-os naquele baú empoeirado em cima do guarda-roupas (aquele em que nunca mexo).

Lembrei de quanto tempo faz. De quanta coisa eu já vivi desde quando decidi que não viveria mais nós dois. De quantas paixões já me rasgaram, de quantas noites já me assistiram, de quantas belezas já me presentearam.  Era isso. Era só a minha mania de (vi) ver as coisas do jeito mais intenso do mundo – até as lembranças de uma rua deserta. Era só a minha serenidade brindando mais uma vez à efemeridade da vida.

 

Comentar sobre Quando decidi que não viveria mais nós dois

20 comentários abaixo sobre Quando decidi que não viveria mais nós dois

  • É o que eu sempre digo: “Nunca foi amor a saudade que se tornou esquecimento”.

    • Tiago Torresani disse:

      E quando não se esquece?haha Aí é que realmente complica.

      • Verdade, Tiago! Eu acredito que a gente não esquece aquilo que nos marca; seja bom ou ruim. Tentar dizer que esqueceu, que não sente mais nada, para mim, é tudo papo furado. A gente pode aprender a superar as coisas, ou seja, aprender a conviver com aquilo; isso significa possuir inteligência emocional. Quando se foi, mas não virou saudade, então não marcou de nenhuma forma. O segredo dos emocionalmente fortes é saber conviver com isso, com aquilo, com tudo que a vida apresenta. Abraço!

  • Daniele Felix disse:

    porque será que me identifiquei tanto com esse texto. ah essa saudade. Esse gostinho de que foi tão bom enquanto durou, mas mesmo assim temos que seguir em frente. por mais dolorosa que sejam as lembranças. Parabéns o texto ficou lindo <3

  • Érica Lopes disse:

    Nathalí <3

  • Aline Lamberti disse:

    ‘Eu olhei à minha frente. Havia outra rua. Outras pessoas, outros quebra-molas, outras lembranças; algumas já feitas e outras por construir. Sorri aliviada, como num filme de drama barato, e coloquei de novo os meus pés no chão.’

    Que texto maravilhoso!
    Obrigada! :)

  • Morgana Colombo disse:

    “Mas mesmo as coisas certas doem, eventualmente.”
    Uma das melhores frases que eu já li. Tens uma fã Nathalí. Texto sensacional <3

  • Penha disse:

    Q lindo.
    Acho q todo mundo tem uma rua na memória.
    Q de vez em quando tenho q ir me buscar lá.

  • Luciana disse:

    Estou de pé aplaudindo…hahhaha..Texto maravilhoso!

  • Paola Barata disse:

    Aí meu Deus, perfeito, mulher fez eu chorar, e sentir cada palavra. Sinto-me grata por cada letra.

  • Letícia Gama disse:

    Difícil não se emocionar com um texto desse. Parabéns pelo post Nathalí!

  • Caiu um cisco aqui, caiu um cisco aí?

  • Aryane Rodrigues disse:

    “Era o grito que a minha alma precisava dar. E se há uma coisa que a vida me ensinou foi a não calar a minha alma.”
    Nossa, difícil não relembrar momentos lendo um texto assim! Passei por uma separação há 3 meses – 10 anos juntos, 8 anos casados! Difícil aceitar que acabou, tomar a decisão que não dá mais! Hoje os dias passando entendo que essa foi a melhor escolha, que ainda há tempo de sorrir, de renascer, de viveeeer <3
    Naaaa, que texto maraaaa ! #esseblogétopdemais

  • Neyane Gonçalves disse:

    Arrasou Nathalí

  • David Garcia disse:

    Que texto maravilhoso, realmente muito dificil nao si emocinar com essas palavras, ainda mais quando voce fala assim:
    Mas mesmo as coisas certas doem, eventualmente.
    Obrigado moça voce é demais !

  • Bruna Otoni disse:

    Que texto ! Me emocionei.. traduziu tudo o que anda “passeando” na minha cabeça..

  • Vanessa Liscamouro disse:

    Intenso!

  • Helena Montagnoli disse:

    Jesus .. que texto é esse. Fenomenal …

    “Era isso. Era só a minha mania de (vi) ver as coisas do jeito mais intenso do mundo – até as lembranças de uma rua deserta. Era só a minha serenidade brindando mais uma vez à efemeridade da vida”.
    me achei nisso.

  • Carlos Santos disse:

    Uma rua, um cheiro, uma música, um filme…. Tudo o que é bom fica, mas chega um momento que você guarda somente as boas lembranças, e percebe que ainda existe amor, mas aquele amor diferente. Vou amar minha ex-namorada para o resto da vida, mas hoje esse amor é sinônimo de querer ber, desejar sua felicidade, mesmo que seja com outra pessoa! E assim continuo caminhando, procurando novas ruas, novos cheiros, novas músicas, filmes, ou seja, a vida é feita sempre de novas lembranças, olho sempre fr pra frente, viva o novo e seja feliz! Um brinde ao amor.

  • Como não virar seu fã menina?
    É um sentimento estranho, esse o da perda de algo que você achava que ia durar “pra sempre” né?
    E ai você recebe um SMS e tudo se resume nesse paragrafo:
    “Lembrei de quanto tempo faz. De quanta coisa eu já vivi desde quando decidi que não viveria mais nós dois. De quantas paixões já me rasgaram, de quantas noites já me assistiram, de quantas belezas já me presentearam. Era isso. Era só a minha mania de (vi) ver as coisas do jeito mais intenso do mundo – até as lembranças de uma rua deserta. Era só a minha serenidade brindando mais uma vez à efemeridade da vida.”
    É, virei seu fã Nathalí! Obrigado!