Alimentando Richard Parker

Há um provérbio índio americano que diz: “Dentro de mim há dois cachorros: um deles é cruel e mau; o outro é muito bom. Os dois estão sempre brigando. O que ganha a briga é aquele que eu alimento mais frequentemente.”

Esse provérbio me fez pensar na cena em que o menino das Aventuras de Pi oferece, corajosamente, um pedaço de carne para Richard Parker, o tigre enjaulado. Ele está crente na bondade intrínseca de todos os seres e que mesmo aquele tigre feroz nada fará contra ele, se ele reconhecê-lo no fundo dos seus olhos, como um igual. Seu intento é rapidamente contido quando seu pai intervém, dando à Pi a mais dura lição de sua vida: ‘o mundo é selvagem’. Isso o marcará para o resto dos seus dias, que se tornam frios e cinzentos. Até ele ter que deparar novamente com a força avassaladora que ele aprende a tirar de si, quando ele mesmo se encontra diante do animal que ele precisa se tornar para sobreviver. E diante da fome, da miséria e da maldade, que animais alimentamos em nós?

Diego Frazão, o jovem que foi salvo do tráfico através da música clássica

 
Acredito no provérbio dos índios – que, cá pra nós, tem mais conhecimento da vida do que pode aspirar o mais alto filósofo humanista. Convivem em nós, animais selvagens, destrutivos e animais dóceis, criativos. E nossa felicidade depende do quanto alimentamos o animal certo. Que animais despertamos diante da fome de vida e de amor? Penso nos animais tão profundamente feridos que, já por instinto e até prazer, tem gosto em ferir. Nem precisam matar para viver, matam por tênis, roupa, um punhado de pó.

Eles não acreditam que somos todos iguais e querem arrancar à força a indiferença do mundo. Não há como tirar o sangue dos seus olhos. Mas penso também nas mães leoas que sustentam sozinhas a família com um salário-pobreza ou no menino águia que voa alto ao tocar chorando a última música ao mestre que o resgatou, assassinado banalmente numa tentativa de assalto. Somos os animais  que acreditamos ser.

Somos leoas, pastores, cordeiros, lobos, cachorros, ratos em potencial. Guardamos mini zoos dentro de nós. Basta o sinal de alarme da fome ou da ideia da eterna ausência de amor, para despertar a fera. Que pode matar ou criar recursos para sobreviver. Que saibamos escolher com sabedoria de que lado da vida estamos: do lado da fera que
fere ou da que usa todos seus instintos para se superar.

Pois é exatamente isso que separa, afinal, apenas sobreviver como animais
selvagens de viver como animais humanos.

As Aventuras de Pi: eis, na batalha para fazer os efeitos maravilhosos do filme, o grande exemplo do que somos capazes de fazer quando queremos algo até o limite do nosso desejo. Que bicho mordeu essa gente?

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