O que podemos aprender com a homossexualidade de Ellen Page

Não há vida sem sofrimento. Tinha tudo pra ser Nietzsche, Habermas ou um poeta de banheiro de boteco, mas sou eu a primeira a escrever essa constatação barata – pelo menos com esse palavreado pobre. Enquanto olho pela janela de um apartamento perdido na selva de pedras, imagino que cada luz daquelas que minha miopia insiste em distorcer representa um sofrimento. Estar vivo implica em sofrer em maior ou menor grau, por um motivo mais ou menos legítimo. Tem gente que sofre ao pegar todos os dias o ônibus lotado; tem gente que sofre quando o pneu do Audi fura. Tem gente que sofre ao abrir a carteira e não ter um real pra comprar sequer uma coxinha; tem gente que sofre porque alguém colocou cheiro verde na salada de folhas orgânicas. Tem gente que sofre porque passa frio; tem gente que sofre porque estava planejando vestir uma camisa da Dudalina que – olha só que azar! – amassou dentro do armário.

Cada qual com o seu sofrimento, sou de uma política. No que eu puder ajudar a tornar o dia de alguém menos insuportável, cá estou. Ou melhor, no que eu puder ajudar a tornar a vida de alguém menos insuportável, cá estou. Aposto que, até esse ponto do texto, você nem imaginou que eu iria falar sobre homossexualidade. Mas, sim, eu vou falar sobre homossexualidade. Mais uma vez? Sim, mais uma vez. Só que agora, de uma forma que eu sinceramente espero que toque você. Porque falar que a cada um dia e meio um homossexual é morto por ódio no Brasil não adianta – a patrulha da moral e da família, ignorante como sempre, contra argumenta que heterossexuais morrem muito mais. Dizer que toda maneira de amor vale amar, como bem nos ensinou Milton Nascimento, também não adianta – Bolsonaros e (In)Felicianos da vida se apoiam naquele livro sagrado para dizer que para Deus, família é homem, mulher, filhinhos de cabelo penteado com gel Bozano e um cachorrinho que come Frolic. Argumentar que a homossexualidade está presente em pelo menos 450 espécies animais tampouco surte efeito – na cabecinha (e põe inha nisso) dos que temem uma ~ditadura gay~, o ser humano, como animal racional, só faz isso por sem vergonhice.

No final da semana passada, Ellen Page, aquela menininha bonitinha que fez a adolescente grávida em Juno, aquele filme que você, seus pais e seus avós homofóbicos acharam uma graça, declarou ser gay numa conferência da Human Rights Campaign, associação que luta pelos direitos LGBT. Sim, gay. Uma menina que beija meninas, que transa com meninas e que, acima de tudo, ama meninas. Aí você, pseudo-mente-aberta, assiste ao vídeo, acha emocionante e tal, mas logo emenda um comentário do tipo: respeito a orientação dela, mas ela é tão bonita pra ser lésbicaNunca deve ter experimentado um macho que desse conta. Ou não tenho nada contra gays, mas morreria de desgosto se meu filho fosse.

E é aí que mora o cerne da questão. Por que mulheres bonitas não podem ser lésbicas? Simples: porque você tem que ter a chance de traçar todas as mulheres bonitas do mundo. Por que você morreria de desgosto se tivesse um filho gay? Mais simples ainda: porque o seu ideal de felicidade é aquele propagado pelas instituições conservadoras e pelos comerciais de margarina. Resumindo em poucas e diretas palavras: porque você é preconceituoso e egoísta. Porque você projeta o seu ideal de felicidade no outro – se você casou cedo e não pode transar com tantas mulheres assim (mesmo tendo dado aquelas escapadinhas, porque, oras, nenhum homem é de ferro!), que pelo menos o seu filho varão o faça. Porque você, por incrível que pareça, não almeja a felicidade – você quer é ter uma família ~perfeita~ para levar nos eventos sociais.

E aí fica uma reflexão que dói mais do que furúnculo na bunda: todo mundo sofre, sem dúvidas. Mas será que realmente o grande sofredor da história é você, que não consegue aceitar um filho gay, ou seu filho gay, que tem que se esconder por trás de mentiras e pedir perdão todos os dias sem nunca ter feito nada de errado? Será que a repugnância que você sente ao ver dois gays se beijando é maior do que a repugnância que as suas palavras preconceituosas causam aos ouvidos de um casal de lésbicas? Será que o seu vizinho gay andando de mãos dadas com o namorado pelo hall do seu prédio é mais ofensivo do que cada veto aos direitos LGBT no Congresso?

Se nenhum de nós está imune a viver sem sofrer, que pelo menos aliviemos o sofrimento do outro quando ele é provocado pelas pedras que saem das nossas próprias mãos.

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