Achava que bastava café amargo

Achava que, depois daquele infindável inverno, as coisas finalmente voltariam ao normal e que aquele imenso galho seco, retorcido e cabisbaixo, seria enfim recoberto pela cor das flores amarelas que tanto amávamos elogiar enquanto passeávamos de carro e sem rumo, pelas ruas estreitas da vida.

Achava que essa nova estação teria o mágico poder de me deixar bem mais distante das paradas que fizemos no passado e confortavelmente mais longe das lembranças daquilo
que trilhamos em nossos vagarosos vagões.

Achava que, depois daquele silĂŞncio insuportável, vez ou outra interrompido pelo barulho imaginário do seu falso retorno abrupto, eu poderia enfim voltar os ouvidos para um blues tocado por esse cĂ©u aparentemente feito de giz e para o jazz, que ouvĂ­amos enquanto ainda havia ouvidos atentos para nossa paz.

Achava que, depois de engolir algumas muitas coxas de moças cujos abraços eram apenas rascunhos malfeitos dos seus abraços, eu finalmente seria capaz de livrar-me do seu gosto, dolorosamente incrustado em minhas papilas gustativas.

Achava que o tempo curaria essa ainda potente abstinĂŞncia e que, apĂłs muitos giros estonteantes no relĂłgio, o ponteiro enfim se transformaria na varinha de condĂŁo necessária para que vocĂŞ sumisse de minha cartola e eu, enfim, desgrudasse meu futuro ilusĂłrio de sua cola desnecessária.

Achava que bastaria trocar vocĂŞ por alguma coisa e que, dia apĂłs dia, hora apĂłs hora, verĂŁo apĂłs verĂŁo e cafĂ© amargo apĂłs cafĂ© mais amargo ainda, eu conseguiria fazer com que desentalasse de minha garganta que já nĂŁo suporta mais essa dificuldade de engolir a sua ausĂŞncia.

Percebi que achava errado e que nosso passado nĂŁo passa com a vinda de novos passos, e que suas poças, repletas de reflexos de nossos brindes estilhaçados, ainda estĂŁo em todo lugar. Mesmo com o tempo a todo vapor, vocĂŞ nĂŁo evapora nunca do meu suor.

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