Amo você bem mais que futebol
Na semana passada, lá pela quarta cerveja, ele me disse: “Pai, se eu morrer antes de você, por favor, escreva algo bonito sobre mim em sua coluna do jornal”. Eu fiz alguns segundos de silêncio, fingi que estava entretido com algo em meu celular e tentei – como sempre faço quando a pauta me incomoda – mudar de assunto; mas ele, meu filho único, insistiu: “Pai, se eu morrer antes de você, prometa-me que escreverá algo legal sobre mim no jornal!”. Então, após perceber que o meu eterno moleque não desistiria facilmente, eu disse “sim” e, carinhosamente, apertei a nuca dele como sempre faço quando as minhas palavras de amor são barradas por uma parte covarde de mim. Ele, o filho que eu tive quando eu era apenas um adolescente, depois de ouvir o meu “sim” engasgado e baixinho, apenas sorriu, encheu o meu copo sem moderação e perguntou o que eu achava do Benzema (destaque da seleção francesa). “Para opinar, prefiro esperar pela próxima rodada”, eu respondi, bocejei, dei o último gole em um restinho de cerveja já quente e fui para o meu quarto.
Naquela noite eu não consegui, nem por um milésimo, fechar as pálpebras. Por que o Roberto me pediria algo do tipo? Logo ele, que nunca gostou de ser notado, pediu-me um para ser destaque na área que eu crio, semanalmente, dentro do jornal. Por quê? Não entendi nada, mas confesso: amedrontei-me, como há tempos não acontecia comigo, quando me deparei com assustadora possibilidade de vê-lo partir antes de mim.
No dia seguinte, ainda com aquele pedido inusitado ecoando em meus pensamentos, eu sentei sobre a cadeira laranja que me suporta todos os dias e tentei, em vão, escrever sobre futebol – tema que eu abordo no tradicional Correio de Coirópolis, há vinte anos, sempre aos domingos. Porém, escrever sobre a presença não notável do Fred em campo, sobre a seleção da espanhola eliminada precocemente ou sobre uma mordida canibal dada em um ombro azul, graças às palavras que eu havia ouvido na madrugada anterior, tornou-se uma tarefa complicadíssima. Em meio a milhões de assuntos futebolísticos, apenas uma imagem em meu pensamento: Roberto, filho que desde os dezoito anos já não me pede mais nada, pedindo-me para, depois de morto, ser convocado a adentrar no campo do jornal que eu geralmente ocupo com o Neymar ou com qualquer outro goleador de cabelo exótico e presente em todos os breaks comerciais do horário nobre.
“Mike Tyson acabou de perder o posto de mordedor para Luis Suárez, craque da seleção uruguaia que, pelo visto, é incapaz de controlar os afiados dentes de castor!”, tentei começar algo interessante, mas, após mais de quinze minutos com os dedos imóveis e encarando, feito uma estátua, a tela do computador, desisti de escrever sobre o aspirante a Hannibal Lecter da semana.
“Jornalista espanhol afirmou que o clima brasileiro influenciou no péssimo desempenho de algumas das seleções europeias. Só pode ser brincadeira! Ou, o que eu considero mais provável: faltou Merthiolate que arde. Muito ‘mimimi’ e pouquíssimo futebol!”, pareceu-me um bom começo. Bem-humorado como o povo gosta. Porém, logo travei novamente e percebi que não chegaria nem perto da quantidade de caracteres que eu precisava escrever para ocupar o espaço reservado para mim.
Então, após uma manhã inteira fumando compulsivamente e escrevendo miúdas frases, eu resolvi não esperar por uma pegadinha da morte para realizar o desejo do meu filho. Enquanto os meus olhos marejavam, eu escrevi:
“Caros leitores, eu sei que vocês, fielmente e há anos, leem a minha coluna quando querem ficar por dentro dos lances mais polêmicos da rodada, porém, hoje – apenas por hoje! -, peço licença para deixar o futebol de lado e para falar de outra coisa. E por que eu, um fanático por futebol, em plena Copa do Mundo, escreveria sobre outro assunto? Que outro amor – além daquele que me faz presente nos estádios, que diminui a frequência das minhas piscadas e que aumenta a velocidade dos batimentos do meu coração – me faria, apenas por uma coluna, deixar o futebol na reserva? Eu explico: Roberto (não o Carlos e sim o meu filho).
Vocês, leitores que me acompanham desde o meu início por aqui, sabem que, nas páginas deste jornal, claramente e sem meias palavras, eu já confessei o meu amor pelo Palmeiras, a paixão que sinto pela seleção canarinha e o motivo que me faz responder “Pelé” sempre que me pedem para dizer quem foi o melhor jogador da história; porém, em nenhuma das mais de mil colunas escritas por mim, encontrarão sequer uma menção do orgulho que eu sinto quando fecho os olhos e penso no meu filho. Por isso, como o artilheiro que, depois dos gols feitos, homenageia o ser amado, eu dedico esta coluna, inteiramente, ao menino-homem que amo, mesmo sendo um baita de um perna de pau.
Roberto, meu filho, talvez você não saiba ou ainda possua algumas dúvidas em relação ao quão longe eu iria pelo seu bem, mas, acredite: se fosse necessário, para ter a certeza de que você nunca se afastará de mim, eu queimaria, sem pensar, a camisa mais rara da minha coleção – aquela que recebeu o autógrafo de todos os jogadores da gloriosa seleção de 58 e que está emoldurada na parede da minha sala. Para que você – que sempre preferiu os tatames aos gramados – nunca deixe de me visitar somente para me apresentar à sua mais nova namorada, eu vestiria, por anos seguidos, a camisa do Corinthians. Para que você – que torce pelo verdão, mas que não sabe nem quem é o goleiro do time – não pare nunca de reclamar quando eu, em meu carro, resolvo ouvir a transmissão dos jogos de futebol, eu trocaria as próximas cem finais do Campeonato Brasileiro por penosas visitas ao dentista – e você sabe bem o quanto eu odeio os dentistas.
Roberto, eu preciso que saiba: o melhor dia da minha vida não foi aquele no qual o Marcão defendeu o pênalti cobrado pelo Marcelinho Carioca. Não foi, também, o dia no qual o Roberto Baggio chutou a bola na lua. Sabe qual foi o melhor dia da minha vida, meu filho? Foi o dia no qual eu deixei de ser apenas filho e, maravilhosamente, tornei-me também pai, seu pai e, sem dúvida, aquele que até o fim da vida aplaudirá os seus gols, que estará ao seu lado quando você sofrer a próxima falta, que não deixará você desistir em caso de contusão e que, por amor – o maior que eu conheci até hoje – insistirá sempre em ser o seu técnico. Nunca é tarde para dizer: eu amo você bem mais do que eu amo o futebol.
P.S: Ainda não tenho uma opinião formada sobre o Benzema, mas, em relação a você, meu filho, não tenho dúvidas: é o craque de quem eu mais me orgulho e, com certeza, o meu gol de placa.”
Meu filho, quando leu, chorou como no dia em que tomou a primeira vacina. E eu lacrimejei como nas vezes em que o meu Palmeiras foi rebaixado. Depois, ainda com olhos inchados e vermelhos, fomos ao estádio, bebemos cerveja e comemos espetinhos de gato.
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