Amor, sabe que dia é hoje?
Não sei se devido à chuva com potencial destruidor de cabelos “chapinhados” ou se graças à ansiedade que visivelmente a possuía, mas ela, meu amor, como se não estivesse montada em um salto quinze, correu em direção ao meu carro. Ela abriu a porta, pulou – com maestria – uma enxurrada violenta que havia entre ela e o meu banco de passageiros, deu-me um beijo rápido e, sorrindo de maneira assustadoramente abestalhada, perguntou:
– Amor, sabe que dia é hoje?
– Sexta! – respondi, achando que ela estava preocupada com o pagamento que não havia caído, com o último capítulo da novela ou com alguma amenidade do tipo.
– Amor, que dia é hoje? – ela repetiu, engrossando notavelmente o timbre. Mudou de Sandy para Ivete Sangalo.
Sabia que algo de ruim estava prestes a acontecer.
– É dia de rock, bebê! – eu respondi, em tom de brincadeira.
Brinquei na hora errada. O tempo, dentro do carro, rapidamente ficou mais tempestuoso do que lá de fora.
– Ricardo, que dia é hoje?
Sabia que aniversário dela não era. Sabia, também, que não era Dia dos Namorados. Só sabia disso. Então comecei a chutar:
– É nosso aniversário de namoro?
– Não.
– Pode me dar uma dica?
– Não.
– Já sei! É dia der irmos ao cinema, certo?
– Não.
– Nem uma dica? Uma só?
– Não.
E a coisa só foi piorando. Era como se eu estivesse participando do Show do Milhão e não houvesse nenhum universitário para me ajudar. E ela, diferente do Silvio Santos – que sorri até quando o mandam enfiar o bambu no cu -, a cada resposta errada fazia cara de mais nervosa e expunha um pouco mais os caninos afiados.
– Aniversário da sua mãe?
– Não.
– Do seu pai?
– Não.
– Do seu avô Getúlio?
– Não.
– Da sua avó Aparecida?
– Minha avó Aparecida já morreu, esqueceu? Quer morrer também?
– Então só pode ser “niver” da sua avó Albertina, acertei?
– Ricardo Coiro, que dia é hoje?
Quando ela disse meu sobrenome, o desespero bateu. Fiquei gago, iniciei uma série de tiques nervosos e, como se estivesse nos segundos finais de uma rodada decisiva de Imagem em Ação, comecei a falar tudo o que vinha à mente:
– Dia da UFC?
– Não!
– Início da primavera?
– Não!
– Fim do Horário de Verão?
– NÃO!
– Dia Mundial do Gato Persa?
– NÂO!!
– Dia do Veterinário?
– NÂO!!!
– Final do Campeonato Canadense de Patinação no Gelo?
– NÃO, Ricardo, NÃO! NÃO e NÃO! Hoje faz um ano que nos beijamos pela primeira vez! E você, insensível do jeito que é, não se lembrou.
Respirei bem fundo. Contei até dez. E defendi-me:
– Insensível? Essa é muito boa! Já tenho que me lembrar do meu CPF, RG e CEP da minha casa. E não para por aí: preciso memorizar a senha de três cartões de crédito, do Facebook, do Twitter, do alarme de casa, do Gmail e de um milhão de programas de fidelidade nos quais eu me cadastrei por imposição. Não só isso, meu bem: ainda tenho que saber, sem direto de hesitar, sua cor, banda, comida, raça de cachorro, atriz, tia, espécie de formiga, bandeira, marca de acetona, posição sexual, foto do Johnny Depp, poltrona de avião, estação do ano, quantidade de miolo no pão francês, parte do corpo e outras mil coisas preferidas. Acha mesmo que me esquecer da data do primeiro beijo é falta tão grave assim?
– Talvez não – ela respondeu bem baixinho.
A reação dela havia mudado completamente. Enquanto eu avermelhava e, quase sem respirar, cuspia aquele monte de palavras, ela foi se encolhendo. E acho que percebeu o quanto estava exigindo de mim algo sem a menor importância.
Eu pensei em continuar cuspindo a minha raiva, juro. Porém, resolvi aproveitar a deixa para trazer paz àquele ambiente.
– Eu não me esqueci da data do nosso primeiro beijo. A verdade é que eu nunca soube. E sabe por quê? Pois no dia seguinte do nosso primeiro toque de lábios, até para olhar a agenda, eu estava demasiadamente ocupado. Eu já acordei completamente embriagado de você e, se quer saber, não conseguia mais pensar em data, horário, mês e em qualquer outra coisa do tipo. Só pensava em ver você de novo. E, desde lá, em todos os dias e horários, é nisso que penso. Não quero saber se é domingo, segunda ou feriado: apenas fico pensando em estar com você. E sabe o melhor de tudo isso? Não precisamos de uma desculpa para comemorar. Celebramos, todos os dias, sem precisar de um motivo marcado na agenda ou de jingle no rádio informando a chegada de alguma data comercial. Se isso realmente for algo importante para você, meu amor, eu colo um Post-It no espelho do meu banheiro e prometo que em 2017 eu farei uma surpresa mirabolante, mas, se quer saber a opinião, acho que não devemos desperdiçar essa maravilhosa calcinha fio dental que está usando e que precisamos comemorar hoje mesmo, que tal?
– Como sabe da calcinha? – ela perguntou assustada.
– Eu não sei as datas, mas sei muito bem como se comporta deliciosamente bem nelas – disse. E segui para um local com espelho no teto e quartos temáticos. E adivinha? Era dia de desconto na pernoite.
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