Aposto no oposto
Ela é espiritualizada e eu, acredite se quiser, não acredito em nada. Ela come bastante salada e eu, apesar do medo da morte, vou direto à empada. Ela faz teatro e eu, nas poucas vezes que finjo algo, prego peças. Ela mora à beira da boemia e eu, quando moro em algum lugar, procuro esticar meu colchão na calçada mais pisoteada da cidade. Ela gosta do sol – dá para ver pela melanina da pele dela. Já o branco da minha pele não nega: tenho sede de sombras.
Ela crê em outras vidas e eu, pelo pouco que conheço desta aqui, sei que tenho seis vidas a menos que um gato. Ela escreve bem, mas, com medo de se expor, guarda tudo para sei lá quem. Já eu, com medo de morrer com mil letras entaladas na goela, exponho-me até dizer chega. Ela é de Gêmeos – multipolar e do tipo que escreve e logo apaga. E eu, pelo que minha tia disse, sou de Peixes – muito idealista no amor, viciado em sonhos e, levemente, “donjuanesco”.
Ela é de alma. Eu sou de carne. Ela come carne. Eu como nhoque. Ela não enxerga bem e eu, quando quero, enxergo até o comprimento dos cílios dela. Ela era ruiva, agora é loira e, quando ler esse texto, provavelmente, não saberá mais o que quer ser. Meu negócio é ser moreno, sempre. Ela, quando tira férias, corre pro meio do mato para admirar os passarinhos e eu, sempre que posso, procuro uma nova megalópole cheia de pombas e cimento. Ela adora uvas e eu prefiro vinho. Ela é indubitavelmente linda e eu, quando estou perto dela, finjo que sou. Indubitável.
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