Até o amor tem limite
Eram um casal mais unido que coxas de gordo sem cueca. Onde um ia, o outro ia. Na verdade, onde Alfredo ia, Julinha ia. Mas onde Julinha ia, nem sempre Alfredo ia atrás. À bem da verdade, Julinha já havia ido para a cama com o bairro inteiro – pelo menos três vezes com cada um. Mas não pensem vocês que Alfredo era um corno manso não. Nem o último a saber. Ele sabia sim, sabia de tudo. E não ligava. Ele a amava tanto que esse mero detalhe não fazia sentido.
Julinha não cozinhava, não lavava e não passava. Enquanto Alfredo dava aulas de português durante todo o dia, ela saracoteava pelo bairro, ia ao salão de beleza ou ficava em casa assistindo reality shows de culinária – ironicamente, seus favoritos. Mas Alfredo não ligava, não mesmo. Eles eram felizes. Ela o amava, cuidava dele. Da maneira dela, mas cuidava. Lhe fazia massagem nos ombros enquanto ele corrigia as provas dos alunos. O acompanhava nas longas sessões de cinema francês dos anos sessenta – e sem reclamar.
Ele, baixinho, meio careca, com um bigode que mais parecia um chumaço de pelos desalinhados agarrados no ralo do banheiro. Ela, alta, seios fartos e sempre em riste, coxas roliças e bem torneadas, uma bunda mais dura que bunda de estátua. Na cama, um vulcão prestes a destruir Pompéia e mais três cidades vizinhas a sua escolha. Ele escrevia cartas, poemas, sonetos, músicas, tudo o que havia de escrever, ele escrevia. Já ela, Alfredo nem se lembrava de como era a sua letra. “Eu não tenho a sua criatividade, amor, prefiro só falar, tá?”. E quem era ele para falar que não, com ela dizendo isso baixinho e correndo com a língua até o lóbulo da orelha dele, encerrando com uma mordiscada suave e um beijo doce na bochecha?
Ela tinha defeitos, ele não ligava. Ele tinha defeitos, ela não ligava. Até que um dia Alfredo saiu de casa. Assim, rápido como a frase “Alfredo saiu de casa”. Juntou umas roupas e simplesmente foi embora. Aos que perguntavam, Julinha dizia não ter entendido bem o motivo, apesar de Alfredo ter tentado explicar. Ela chorava, copiosamente. Ligava para Alfredo que, irredutível, nem a deixava terminar as frases. Sofreu por meses a fio, até que decidiu desistir dos homens e virar freira. Um ano depois do ocorrido, Alfredo passou no bairro para visitar os amigos. Ninguém entendia o porquê de tão repentina partida. E aquele amor todo? E toda aquela compreensão? E toda aquela bunda? “Se cansaste de ser corno, Alfredinho?”, indagavam os mais íntimos. Por mim, já sem paciência, Alfredo sentenciou, como um juiz que dá o veredito de pena de morte:
– Foi um bilhete. Tivemos uma leve discussão e ela colocou um bilhete na minha pasta, escrito “Alfredo, te amo demais. Beijos, Julinha”
Agora é que danou-se tudo. “Tu terminasse porque ela disse que te ama, homem de Deus?”. Alfredo, calmo, pegou um papel e se pôs a escrever.
– Isto foi o que ela me escreveu – E escreveu, exatamente assim: “Alfredo te amo de mais. Beijos Julinha”.
Silêncio na mesa. Ser corno todos entendiam ele aceitar. Uma mulher que não lava, não passa e não cozinha, que homem não pode aceitar? Mas errar a vírgula duas vezes na mesma frase e escrever “de mais” separado – isso é demais. Tudo tem limite.
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