É preciso apontar os próprios erros
Hoje eu abandonarei as corriqueiras rimas sobre amor e dor para, honrando minha inegável porção mineira, dedicar tempo e algumas linhas a contar-lhes um “causo”. Alerto de antemão que não é nenhum “causo” Romântico capaz de fazer-lhes sorrir ou chorar. É somente um relato sobre como nossas mentes são sorrateiramente capazes de nos punir e ensinar.
Aconteceu no último sábado, dia 28 de março. Na sexta-feira anterior eu havia ido ao médico e, distraída que sou, esqueci a receita do medicamento prescrito no próprio consultório. Diante disso, a secretária me telefonou e avisou que deixaria a receita na portaria do edifício para que eu pudesse buscá-la no sábado pela manhã.
O consultório médico fica em um prédio antigo localizado numa travessa da Avenida Paulista. Durante a semana o lugar é infernal: superlotado, cheio de contramãos e é humanamente impossível encontrar uma vaga para estacionar o carro gratuitamente na rua. Normalmente eu pago inacreditáveis vinte reais para parar o carro durante meia hora em um estacionamento localizado numa alameda paralela. É um absurdo mas há coisas que só São Paulo explica.
Eis que naquele sábado eu teria a oportunidade de ir àquela rua em um dia de estranha calmaria e finalmente estacionar o carro sem pagar. A rua provavelmente estaria vazia e seria uma oportunidade ímpar de compensar os incontáveis vinte reais que eu já paguei para parar ali. Ainda que eu só precisasse parar o carro rapidamente para pegar a receita com o porteiro, seria gratificante estacionar gratuitamente. Seria recompensador. Mas não.
Assim que cheguei à rua na manhã daquele sábado quase ensolarado, notei que mesmo em dia inútil, muita gente para por ali. Não avistava vagas a olho nu e me incomodei verdadeiramente com a ideia de ter que pagar novos vinte reais para estacionar o carro. Dei uma volta no quarteirão e me revoltei ainda mais com a possibilidade de ter que recorrer ao estacionamento pago para buscar uma simples receita médica.
Eis que após algumas voltas vislumbrei uma tentadora possibilidade. Havia uma vaga livre exatamente em frente ao prédio. Era perfeita. Providencial. Eu não precisaria parar nem por sessenta segundos. Seria o tempo de parar, correr até a portaria, pegar a receita, correr para dentro do carro e partir. Havia apenas um detalhe pintado em azul em branco sobre o piche: era uma vaga destinada a idosos.
A ética relutou contra os inevitáveis impulsos de canalhice da minha mente e eu tentava conter a racionalidade da moral intuindo que a probabilidade de aparecer um idoso para estacionar em sessenta segundos era extremamente remota, que seria muito rápido, que não teria problema algum.
E eu parei. Engasguei a racionalidade e nem pensei; só parei.
Foram os sessenta segundos mais tortuosos da minha vida. Corri até a portaria numa velocidade que um idoso jamais atingiria. Refleti arrependidamente sobre essa crueldade. Desesperei-me com a vagarosidade do porteiro em encontrar minha receita em meio às demais correspondências e corroía-me de culpa pela possibilidade de ser pega de surpresa. Senti na pele a dor da espera. E poderia ser a mesma espera de um idoso por uma vaga em frente ao prédio. Eis que após quarenta intermináveis segundos, já com a receita em mãos, saí em disparada em direção ao carro e ao alívio da minha pesada consciência e, de inevitável supetão, esborrachei-me no chão.
Enquanto corria em direção ao carro, eu, de maneira logicamente inexplicável, tropecei nos meus próprios pés e tomei um dos tombos mais constrangedores da minha vida. Dei de cara, joelhos, cotovelos e consciência no chão. A rua inteira parou para olhar. Tão feio foi o tombo que dois senhores pensaram que eu havia desmaiado e prontamente correram para me ajudar. Tratei de rapidamente levantar e, já munida de feridas e hematomas, apressei-me em direção ao carro para partir e repensar.
Refleti arrependidamente sobre o que aconteceu. Talvez os mais ortodoxos digam que foi bem feito; que Deus me castigou. Mas eu, mesmo imbuída de toda a fé que me sustenta, prefiro acreditar que não: fui eu que me castiguei. Eu certamente me castiguei. Eu estava tão envergonhada da minha atitude, senti uma culpa tão corrosiva por aquela situação, que devo ter inconscientemente me jogado no chão como meio de punição.
Aprender com as próprias quedas é o clichê mais batido de todos os tempos e ainda assim se fez verdade. Eu aprendi. Aprendi com um tombo dolorosamente vergonhoso a envergonhar-me da minha falta de vergonha. E como toda punição deixa uma lição, apreendi que nem mesmo por sessenta segundos devo permitir que meus primitivos impulsos egoístas se sobressaiam.
Hoje, confesso, orgulho-me das cicatrizes que estampam meus joelhos pois elas refletem um aprendizado que eu felizmente consegui racionalizar. E, mais do que isso, percebo o quanto o mundo é sedento de gente que perceba, envergonhe-se, arrependa-se e, consciente ou inconscientemente, puna os próprios erros. Mesmo os mais banais.
Digo isso porque visualizar os erros alheios é simples demais. Isso todo mundo faz. Os erros alheios são tão nítidos quanto aquela inscrição de “vaga para idosos” no chão. Reconhecê-los é até meio covarde. O mundo é realmente sedento de pessoas que se preocupem genuinamente com os próprios deslizes e preconceitos. O mundo precisa de pessoas conscientes de que punir a si mesmo é mais honesto e eficaz do que tentar doutrinar o próximo e por isso prefiram ensinar às suas próprias consciências as lições que o dia a dia repassa àqueles que são humildes o suficiente para reconhecerem as próprias fraquezas sem se camuflarem sob a utopia de que não cometem erros.
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