Eu percebi que a gente não dá certo
Ontem, depois que você abocanhou o último pedaço de pizza de atum, empurrou-o goela abaixo com um gole desesperado de Coca Zero, esfregou uma mão na outra livrando-se dos farelos de trigo e disse naquele tom inexplicavelmente apressado à meia noite e meia de uma quinta-feira que precisava ir embora, eu percebi que a gente não vai dar certo.
Na verdade eu já havia percebido. Venho percebendo há bastante tempo. Tola, eu percebia mas insistia em errar. Percebi que a gente não daria certo logo na primeira semana de conversa. Eu lembro até hoje. Nós não nos conhecíamos pessoalmente e você cochichava lindos discursos elogiosos ao pé da minha inbox quando de repente, buscando assunto onde não deveria, revelou que só come pizza de atum; nunca varia.
Curiosamente encantada, não questionei essa sua mania. Mas confesso que do baixo dos meus preconceitos eu já desconfiava secretamente que a paixão logo acabaria. Estava na cara que você era esse cara egoísta que de fato é. Quem em sã consciência não se importa em contaminar uma pizza inteira com a sua metade que cheira a peixe? Quem é tão quadrado a ponto de só se arriscar em um sabor de pizza diante da enorme variedade dos menus paulistanos?
Ignorei o primeiro sinal.
Com o tempo e as pizzas, percebi que você gosta de joguinho; que adora fazer ciuminho; que é mais machista do que parecia. Percebi que você não gosta de samba; que só bebe Coca Zero; que ignora meus elogios e mensagens e alimenta intrigas bobas que afagam o seu ego. Percebi que você só responde bem a pouco caso. Que é um pouco ranzinza e prefere paixões bandidas bem sofridas a amores que lhe oferecem calmaria, carinho e o aconchego de bons abraços.
Mesmo diante de tudo isso, sabe lá Deus porquê, eu insisti no erro e fingi que me adaptei a você. Pedi as suas pizzas e degustei margueritas com aroma de peixe enlatado. Abasteci a geladeira com latas pretas de Coca Zero. Demorei para responder. Neguei-lhe carinhos que involuntariamente eu gostaria de fazer e repeti todos os erros daquela menina boba que aos doze anos fingia gostar de Heavy Metal para dar o primeiro beijo no mocinho de munhequeiras pretas e cabelo moicano sentado na última fileira da 7ª B.
A verdade é que mesmo hoje, tantos desencaixes mais tarde, às vezes me entrego a esse ingênuo engano de tentar fazer dar certo mesmo sabendo que não dá. A euforia, as belezas, as paixões e os começos nos fazem insistir nessa tolice de tentar nos adaptar ao inadaptável e nos cegam a ponto de tentarmos ser quem não somos na vã tentativa de superar incompatibilidades irremediáveis, praticamente impossíveis de afastar.
Acontece que agora eu sei que isso não dá certo e já não tenho mais paciência para atuar ao invés de amar. Você gosta de jogo duro mas eu prefiro levar a vida de um jeito fácil de jogar. Recolha suas peças, sua Coca, seu atum e me deixe voltar a ser eu. Por favor se vá.
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