Há quanto tempo você não olha para si mesmo
Como de costume em dias frios, tirei a roupa rapidinho, sem fazer cerimônia. Liguei o chuveiro pra deixar o bafo quente subir – e para desespero dos ambientalistas. Entrei no banho. A água escaldante caía, relaxando meus ombros tensos e cansados. Eu sentia, mas nem tanto assim. O sabonete era novinho e tinha aquele perfume da madeira do sândalo. Eu sentia, mas nem tanto assim. O xampu prometia, entre outras coisas, o frescor da menta no couro cabeludo. Eu sentia, mas nem tanto assim. A bucha vegetal nova fazia aquela cosquinha gostosa na sola do meu pé. Eu sentia, mas nem tanto assim.
Todos os dias, nós saímos do banho exatamente da maneira como entramos: sem perdas nem ganhos. Revigorados, mas nem tanto assim. Limpos, mas nem tanto assim. Relaxados, mas nem tanto assim. Sobra stress, sujeira, a preocupação do dia a dia e uma pergunta que não quer calar: há quanto tempo não olhamos para nós mesmos?
Provavelmente há dias. Há meses. Há anos. Há vidas. Porque o trabalho sempre foi o mais importante. Mas antes disso, a escola era o mais importante. E antes disso, a natação era o mais importante. E antes ainda, agradar aos pais para ganhar sobremesa era o mais importante. Vez ou outra, a gente até se olhava no espelho. Espremia uma espinha aqui, penteava um cabelo ali. Passava uma maquiagem para ir a uma festa, provava uma roupa nova. Encolhia a barriguinha para caber no manequim 36, experimentava novos óculos de sol. E isso, meus caros, é qualquer coisa, menos olhar para si mesmo.
Já perguntava o advogado do diabo: quem você quis agradar da última vez em que se vestiu? Provavelmente a algum editorial de moda, que diz que a calça florida é o novo hit da estação. Ou à Glorinha Khalil, que diz que a etiqueta do jantar manda a anfitriã receber seus convidados de salto. Ou ao seu namorado, que te acha gostosíssima com aquela lingerie que mais pinica do que encanta. Ou à sua mãe, que pediu pra você não usar vestidos tão curtos nos almoços de família. Ou à sua ~concorrente~ na balada, que precisa ficar impressionada com a quantidade de lurex que faz a sua blusinha brilhar mais do que a dela. E aí, por fim, você nem gosta tanto assim de calça florida, nem de salto alto, nem de lingerie de renda, nem de vestidos moderados, nem de blusas brilhantes. Mas fazer o que, né?
E quantas das suas escolhas recentes foram única e exclusivamente moldadas por você? Ouso dizer que pouquíssimas – ou nenhuma. Aquela proposta de emprego você só aceitou porque sua mãe se orgulharia em vê-la trabalhando das oito às cinco e de roupa social dentro de uma multinacional. Aquela faculdade você só fez porque seu pai queria muito que você desse continuidade aos negócios da família. Aquela dieta você só começou porque diariamente a mídia bombardeia os seus olhos com imagens de mulheres magérrimas em outdoors e capas de revista. Aquele namoro você só começou porque não aguentava mais ser a solteira convicta da galera. E aí, por fim, você nem queria tanto assim trabalhar numa multinacional, nem estudar Administração de Empresas, nem parar de comer aquele prato substancioso de arroz e feijão, nem namorar aquele cara que mais parece um apêndice do que um namorado.
E aí, a pergunta que não quer calar vem à tona mais uma vez: há quanto tempo você não olha para você mesma? Provavelmente, nunca olhou: sempre se enxergou a partir do que o outro acha que você é. E não que seja algo de anormal. Nem que eu, esta pobre e fodida colunista que vos fala, não faça a mesma coisa – do que prega Freud, meu bem, ninguém pode fugir. Mas fazer escolhas – ou pelo menos tentar fazê-las – por si mesmo é necessário. É questão de se permitir ser mais feliz – ou menos infeliz – sem ligar para o que a vizinhança vai achar. De decidir o que é lhe é bom e o que não é sem interferência da TV, do site de fofocas ou da mãe palpiteira. De ser um pouquinho egoísta. Porque quando a infelicidade bater à porta, você vai culpar o mundo, sua mãe chata, seu namorado possessivo, sua irmã encrenqueira, seu trabalho maçante, sua faculdade puxada, sua vizinha fofoqueira, seus amigos intrometidos, o ônibus lotado, a São Paulo chuvosa, a Marie Claire do mês de abril – todos aqueles que fizeram escolhas por você. E que o fizeram porque você permitiu.
Por isso, para terminar, como um Paulo Coelho de saias, me aproprio da velha, óbvia e deselegante autoajuda: as melhores escolhas são aquelas que fazemos dentro de um quarto escuro, sem uma única distração que não seja a nossa consciência. As decisões mais certeiras são aquelas que tomamos quando enfiamos o dedo na ferida – e cutucamos até encontrar, no próprio machucado, o cicatrizante.
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