Irreconhecível

Não sou de fazer barraco ou do tipo que tenta resolver imbróglios e quiproquós à força. Muito pelo contrário, mesmo nas vezes em que começar um escarcéu me pareceu a mais promissora forma de chegar a uma solução – como quando um marceneiro demorou mais de um ano para terminar um simples criado-mudo – eu respirei fundo, contei até seis milhões e optei por medidas excessivamente cordiais, admito, e que, em pouquíssimos casos, deram à luz resoluções concretas.

Meu pai, bem diferente de mim, sempre tentou se livrar dos pepinos à base de truculência. Nunca vou me esquecer da manhã enevoada em que ele, às margens da Serra do Mar, desceu do Santana prata que tínhamos e, sem sequer desferir uma sílaba, começou a esmurrar o motorista do carro ao lado. “Vambora, vambora, olha a hora, vambora, vambora…” saindo de dentro do rádio e a minha mãe, desesperada e cheirando a Sundown, implorando por um stop: “Paulo, para, pelo amor de Deus!” Mas Deus, se é que ele existe, estava distraído ou de folga naquela véspera de Réveillon. Como eu sei? Meu pai só parou de bater naquele homem quando notou que boa parte daquele sangue saía da própria mão. Eu tinha apenas seis anos, mas consigo me lembrar da surra com uma riqueza de detalhes apavorante até mesmo para um adulto com muitas horas de Cidade Alerta no currículo. E sei que nada arrancará da minha memória o que eu senti no dia em que meu herói perdeu a capa e os superpoderes, a caminho do Guarujá.

“Você é muito passivo, filho. Age como um idiota!”, meu genitor urrava quando percebia que eu, depois de um caso de claro descaso, não havia reagido com fúria e caninos à mostra, como ele certamente teria. Contudo, aqueles berros saíram em vão – ou quase -, pois eu continuei no time dos que nunca deixam de começar uma frase com “Por favor”, mesmo quando querem informar profunda insatisfação ou exigir uma atitude imediata. Desfalcando-o, apenas, no dia vinte e nove de abril de dois mil e quatorze. O que me fez mudar?

A música Love me like a reptile já tinha tocado mais de dez vezes consecutivas. Saía do apartamento que fica em frente ao meu, recém-ocupado na época. Até aí, nada de mais, afinal, não me importo com as repetições alheias, nem mesmo com aquelas que parecem sintomas de um TOC. Mas o relógio já marcava 03h11 e o volume do som estava elevado a ponto de fazer com que minhas taças de cristal sambassem. Não só isso: no dia seguinte, bem cedo, eu prestaria um concurso para o qual eu havia me preparado por meses.

Toquei a campainha. Nada. Toquei mais uma, duas, três, quatro, cinco… vinte vezes. Nada. Nem sinal de reação ou respeito. Nada! Pelo contrário, a voz de tabagista do Lemmy pareceu ter ficado ainda mais ensurdecedora, como se quisesse me provocar, tirar-me o controle que por trinta e quatro anos tinha permanecido dentro de mim, preservado no cofre aparentemente inviolável das minhas convicções. Bati na porta. Bati mais forte. Nada. Então, contrariando tudo o que eu havia sido até aquele ponto da vida, vi-me possuído por um ódio incalculável, que me levou a dar pontapés na porta de madeira. Uma voz feminina, lá de dentro, gritou: “Chega!” Fiquei ainda mais puto. Que direito ela tem de me pedir para parar? Comecei a dar soladas na porta. “Chega!”, mais uma vez. E mais uma solada na porta eu dei. “Black mamba, murder in disguise” saindo do som e “Você é muito passivo, filho” se debatendo – feito ratazana recém-capturada por ratoeira – dentro da minha mente, como se um demônio qualquer estivesse me provocando, desafiando-me a, ao menos uma vez, ser o filho do Paulo, alguém verdadeiramente adaptado a esta selva em que vivemos. Mais uma solada, raivosa o suficiente para arregaçar a porta e me fazer descobrir que o volume do som não se tratava de uma molecagem qualquer – como eu havia suposto -, tratava-se, obviamente, de um artifício utilizado para encobrir uma cena intragável: um gordo de mãos peludas segurava a vizinha franzina pelo pescoço, sufocando-a. Os gritos na moça não saíam. Nem as minhas palavras. E, pela primeira vez nada vida, nem sequer cogitei uma abordagem educada ou um “Vamos conversar?”, agarrarei o primeiro objeto que me pareceu eficiente na arte de machucar (um Buda, de pedra) e, antes que o filho da puta tivesse a chance de proteger a cabeça com a palma das mãos, fiz algo que certamente teria enchido meu pai de orgulho: rompi o crânio daquele animal obeso com um só golpe. E, enquanto uma hemorragia matava todo o branco do tapeta da sala, à vizinha que ainda fazia muito esforço para fazer as pazes com o oxigênio, desculpei-me pela demora. E a abracei com a força necessária para que os tremores parassem por falta de espaço para se manifestarem, de uma forma zelosa que, pelo meu já enterrado pai, provavelmente teria sido descrita como “Coisa de maricas”.

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