“Lepo Lepo não é música” – Um manifesto contra a arte de ser cool
O Carnaval passou. Tem quem goste. Tem quem não goste. Tem quem, como eu, ache glorioso simplesmente pelo fato de poder tirar quatro dias e meio ininterruptos de merecidíssimo descanso (ou de canseira – depende do ponto de vista). Tem quem prefira trabalhar nos quatro dias de folia para reivindicar a folga num momento oportuno. Justo. Tudo justo. Cada qual com o seu motivo aproveita o Carnaval – e a vida – da maneira que lhe for conveniente, e eu não estou aqui para julgar ninguém – nem quem transou insanamente durante o feriado, nem quem passou o tempo todo estudando para o concurso público. Estou aqui para devanear sobre uma moda que se instituiu, creio eu, tão logo os anos 90 se foram e o mundo descobriu que Los Hermanos era mais do que Anna Julia.
Não foram poucas as manifestações de pessoas que, logo após o Carnaval, se vangloriaram via Facebook, Twitter, linguagem oral, carta, ou sinal de fumaça por sequer saberem o que era o tal do Lepo Lepo. Não que o Lepo Lepo seja exatamente o tipo de música que me agrada – longe disso. Nem que eu tenha adicionado a bizarríssima expressão ao meu léxico. Mas tenho que admitir: ouvi, cantei, grudou na cabeça e só não dancei porque nunca tive saco pra coreografia. Não é a melhor música do universo. Não vai ser regravada pelo Caetano. Nem o Psirico vai ganhar o Grammy Latino. Mas não é motivo de vergonha confessar que ouviu o Lepo Lepo. Nem que gosta do Lepo Lepo.
Os anos 2000, além de resgatar o McCarthysmo estadunidense, levar a Dercy Gonçalves embora e apavorar o mundo com os tsunamis asiáticos, trouxe a onda cool. É cool conhecer coisas que ninguém conhece. É cool ter o celular que ninguém tem, nem que ele tenha que ser ultravelho para ser exclusivo. É cool ter uma geladeirinha retrô, nem que ela custe o triplo e tenha um terço da capacidade de uma geladeira normal. É cool ouvir músicas que só você e os cinco amigos da patotinha da escola ouvem, nem que você não entenda uma mísera palavra do que aquele carinha londrino canta. É cool assistir a produções cinematográficas neozelandesas de baixo orçamento, nem que o filme seja um besteirol – se não é americano, tá valendo. Mais do que tudo isso, é cool dizer que não gosta de qualquer coisa que seja popular.
Mas por que o popular insulta? Simplesmente porque ele não traz ares de exclusividade ou de intelectualidade. Porque todo mundo conhece Zezé di Camargo e Luciano, e aí não tem graça. Porque todo mundo já foi feliz com Molejão, e aí não faz da gente um povo ~diferenciado~. Porque todo mundo chorou no final de Titanic, e aí a emoção não pode ser genuína. Se for pra ouvir algo popular, que seja Noel Rosa, que foi popular há pelo menos 80 anos. Ou aquele tributo massa que aquelas bandas indies fizeram ao Raça Negra, o Jeito Felindie. Porque se for pra ouvir um “então vem, maltrata de vez, estou com saudade e a sua maldade me faz delirar, cigana”, que seja numa voz docemente desafinada, acompanhada de um xilofone e de um riff em assobio. Luis Carlos, com aquela língua presa? Deusmelivre.
Não vou me estender sobre o assunto. Eu poderia falar sobre a importância das manifestações culturais, que geralmente são um fiel reflexo da realidade social de quem as produz – vide o funk. Eu poderia expressar aqui – e vou, dá licença – o meu amor pelo sertanejo dos anos 90, na época em que Chitãozinho e Xororó não eram seres humanos com mullets, mas sim mullets com seres humanos. Eu poderia discorrer sobre a entrevista em que Tom Zé, mestre do experimental, diz que gravaria “Ai, se eu te pego”, do Michel Teló. Mas vou apenas propor um simples exercício. Que, aliás, foi brilhantemente executado pelo G1 na comemoração do aniversário de cem anos de Vinícius de Morais. Vinny ou Vinícius traz uma série desafiadora de trechos de letras de músicas pra você descobrir a autoria. Ou é Vinny, do mexe-a-cadeirá-hey-bota-pra-daná-hey-trepa-na-mesá-hey-guivirã-guivirã-guivirã, ou do Vinícius, dos clássicos Chega de Saudade e “que não seja imortal, posto que é chama, mas que seja infinito enquanto dure”.
É o que eu costumo dizer. Se fosse Los Hermanos, tava todo mundo compartilhando no status do Facebook. Mas como é Só Pra Contrariar, a gente ouve em segredo no escuro da cama. Não que eu não goste de Los Hermanos. Até acho bonitinho. Mas é que os gênios, muitas vezes, não se escondem sob barbas e camisas xadrez. Fica a dica.
Nota da autora: “É a sua indiferença que me mata. É uma invasão, um nó dentro de mim. Coração divide em dois na sua falta: uma parte é o começo, a outra o fim”. Podia ser Caio F. Abreu. Mas é Zezé di Camargo e Luciano.
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