“Livre” um filme para ficar de bem com os seus passos
“Olhei para o norte, em sua direção, a simples lembrança dessa ponte foi como um sinal. Olhei para o sul, de onde vim, para a vastidão de terra que me ensinou e castigou, e considerei as opções. Havia apenas uma, eu sabia. Sempre havia apenas uma. Continuar andando.” Trecho de “Livre”.
Assistir a um filme como “Livre” é ter mais uma confirmação de que toda mulher possui o dom da elasticidade na alma, algo que se expande, e vai longe, muito longe, algo que está além de qualquer limite opressor inventado. Cheryl Strayed, por exemplo, atravessou um grande trecho da Costa Oeste americana, andando cerca de 1770 km. Eu já a conhecia como escritora, e nutria por ela um carinho que ultrapassava inclusive a minha admiração pelo seu toque autoral: uma auto ajuda (geralmente rejeito) que de tão leve parece até poesia. Cheryl é uma das mulheres que me inspiram em vida, trata da experiência alheia com empatia, afeto, ponderação. Sua generosidade parece saltar em cada parágrafo de seus livros ou das cartas anônimas respondidas em sua coluna “Dear Sugar”, no site americano chamado “The Rumpus”.
Sou fascinado por essas histórias de quem perde tudo, inclusive moralmente, e se coloca em alguma jornada de superação. Em que precisamos nos reencontrar, nos sentir vivos, mesmo que pela dor. “Livre” faz isso muito bem. Respeita o caminho, não apressa o entendimento, não se exagera no sentimentalismo. Os fantasmas, a saudade da mãe, as drogas, o casamento desfeito. O revezamento entre passado e presente, embora não seja um recurso dos mais originais, consegue trazer um tom interessante pra narrativa, mostra pequenos recortes que vão revelando a essência da protagonista interpretada por Reese Witherspoon,
Uma viagem não é um apagão em relação aos nossos machucados. É uma espécie de ausência parcial relativa a um espaço de vida deixado para trás – provisoriamente ou não. As dores voltam, as lembranças arranham, precisam da ressignificação. No filme a saudade é latente, forte e triste. A mochila pesada talvez seja uma grande metáfora sobre o excedente que Cheryl carrega sem perceber, dores que pesam e precisam ficar pelo caminho. O caminho é um esvaziamento e a dor, que antes era um tipo de apego vestido de justificação pra inércia, é também descartável. O nosso urgente é mostrado em forma de frio, sede, calor, fome, medo, depressão, pessimismo, coragem. “Livre” catapulta aquela nossa vontade de largar tudo e partir, apenas partir, sem saber do caminho, deixando o passado cicatrizar, não sem dor, não sem a hipótese de desistir. Essa incerteza mesclada às condições da jornada o tornam um anti-comer-rezar-e-amar.
“Eu tinha muita dificuldade em acreditar nas coisas, mas também tinha a maior dificuldade em não acreditar. Era tão curiosa quanto cética. Não sabia onde colocar a fé, se é que havia tal lugar, ou mesmo qual era o significado preciso da palavra ‘fé’ em toda a sua complexidade. Tudo parecia ser possivelmente poderoso e possivelmente falso.” Trecho de “Livre”.
Talvez seja fácil um viajante-cinéfilo-escritor encarar esse longa como uma deliciosa guloseima audiovisual, e ele é. Mas, é também um nó na garganta, dos mais corajosos. Depois dele, ando pensando que nós não deveríamos nos arrepender nem dos nossos arrependimentos. Depois dele, estou de bem com os meus passos.
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