Meu encontro com Vinicius de Moraes
O que vou contar agora, para a maioria de vocês, parecerá uma insana mentira. Ou até, quem sabe, um delírio provocado pelo uso exagerado de substâncias lisérgicas. Mas não é. Aconteceu, de verdade, comigo.
Há cerca de dois meses, em uma noite de insônia torturante, eu conheci o Geraldo. Ser que mudou completamente a minha existência. Um cara cujos pelos escapavam narina afora e que, após interromper a atividade poética que eu exercia sobre uma mesa boteco, convidou-me para testar sua recém-terminada invenção: uma máquina do tempo.
– Com licença, gostaria que você experimentasse a máquina do tempo que acabei de criar. É possível? – perguntou-me, arregalando os olhos emoldurados por abissais olheiras.
– Os mendigos estão mais loucos do que nunca – pensei, antes de concluir que o melhor que poderia fazer, para evitar que ele continuasse delirando em voz alta, era me calar e fingir surdez total.
– Ricardo Coiro, por favor, não finja que não me ouviu. Tenho, desde dois mil e onze, através do Facebook, analisado o seu perfil e, de todas as potenciais cobaias para meu invento revolucionário, você me pareceu a mais adequada. Topa?
Novamente, fiz-me de surdo.
– Ricardo, por favor, dê-me ao menos uma chance para lhe contar a minha história. Por favor! – Implorou, enquanto juntava as palmas das mãos visivelmente calejadas.
– Você tem quinze minutos para me convencer – afirmei utilizando um tom decidido e, antes que ele começasse a falar, ao garçom, pedi uma garrafa de Domecq.
Então, o Geraldo, assim que o conhaque pousou na superfície da mesa, ao garçom, solicitou uma folha e uma caneta. Material que usou para me explicar, através de ilustrações simples, o funcionamento da engenhoca capaz de enviar, qualquer humano, para qualquer localização e instante do passado.
A teoria foi muito bem explicada, porém, até aquele momento, acreditava que todo aquele papo não passava de um discurso feito por um louco com boa didática e notável conhecimento físico.
– Como é seu nome? – perguntei.
– Geraldo.
– Vamos lá, Geraldo. Sua história, sinceramente, até é interessante. Contudo, em termos práticos, é evidentemente impossível. Se quiser continuar sentado aqui, pode ficar. Mas peço que não insista em tentar me fazer acreditar em suas alucinações.
– Já sei! – berrou, com cara de ideia.
– O que foi?
– Você escolhe um dia, um lugar e um horário. Eu uso a máquina para ir até lá e, quando eu voltar, você me faz uma pergunta que só pode ser respondida por alguém que vivenciou aquele intervalo de tempo e espaço. Que tal? Se eu acertar, você usará a máquina e, quando voltar da sua viagem no tempo, escreverá um relato, de caráter informativo, para o Blog Entenda os Homens. Pode ser?
-Ok. Dois de março de mil novecentos e noventa e cinco. Quero que volte até essa data, na cidade de Jacutinga, e que me conte o que aconteceu, por volta das 18h00, na casa número trinta e sete da Rua Américo Prado.
– Daqui a quatro dias, com a resposta em mãos, entrarei em contato – disse e partiu.
Voltei a beber. E sozinho, como um ser abobado, gargalhei da situação maluca que havia acabado de presenciar.
Quatro dias depois, um número desconhecido ligou para o meu celular.
– Alô, Ricardo? Aqui é o Geraldo. Abra seu e-mail e verá que cumpri minha missão e que sou um homem de palavra. Abraços.
Apesar de não ter acreditado no que eu tinha acabado de ouvir, por incapacidade de domar a minha curiosidade, abri o meu e-mail. E, para minha extrema surpresa, no corpo da mensagem havia uma imagem. Não qualquer uma. Lá estava uma foto do incêndio que provoquei na casa da minha avó, em Minas, no dia em que completei oito anos.
Como ele havia feito aquilo? Uma foto, em alta resolução, de um acidente que provoquei há mais de dez anos. Época na qual a fotografia digital ainda era um recurso de uso exclusivo da Nasa.
Como aquela imagem era possível? Enquanto caminhava sem rumo pela casa e tentava, sem sucesso, responder as dúvidas que pipocavam em minha mente, tropecei em um objeto sólido. Olhei para baixo e, para minha nova surpresa, estava diante do inconfundível Eri Johnson: o jaboti com pinta no rosto que morreu no incêndio que causei tentando acender as velas com gasolina.
Esfreguei os olhos com força para ver se o Eri sumia dali e se eu conseguia fugir de dentro daquele provável sonho. Porém, nada mudou. O Jaboti continuou abocanhando a folha de alface e eu, graças aos eventos que havia acabado de presenciar, permaneci em estado de catatonia momentânea.
O telefone tocou novamente.
– Alô – atendi, com voz mole.
– E aí, gostou da surpresa? – indagou-me o inconfundível timbre daquele cientista maluco, sem noções estéticas e avesso à prática da depilação nasal.
– Você salvou o Eri?
– Eri? Quem é esse? Se for o jaboti, sim. Preferia que eu deixasse o coitado morrer tostado?
– Encontro você no mesmo bar no qual nos falamos pela primeira vez. Chego lá em quinze minutos.
Em cinco minutos eu já estava lá. Roendo as unhas enquanto esperava o Geraldo chegar. Roía as unhas, a pele dos dedos, a palma da mão, e pensava seriamente em viajar no tempo. Mas para qual dia eu voltaria?
A primeira ideia que me veio à cabeça foi voltar no tempo para criar o Facebook antes do Zuckerberg. Ficaria rico e não precisaria trabalhar nunca mais. Porém, para isso, precisaria estudar melhor a plataforma e, naquele momento, eu não tinha tempo e nem cabeça para isso.
Então, pensei em voltar no tempo para impedir a morte do Senna. Entretanto, após pensar bem, percebi que fazer isso, mesmo que movido por boas intenções, poderia ocasionar eventos catastróficos. O suicídio do Rubinho, por exemplo.
Chamei o garçom e pedi uma dose dupla de uísque. E então, no exato instante em que toquei o copo cheio de malte, tive uma ótima ideia: voltaria no tempo para tomar algumas doses com o Vinicius de Moraes. Isso mesmo! Aquilo não faria de mim um homem com mais dinheiro no banco e não salvaria vidas, mas, com certeza, faria de mim uma pessoa melhor.
Assim que avistei o Geraldo entrando no bar, não consegui controlar a ansiedade que enrolava a minha língua. Corri para pedir que ele me enviasse para o Rio de Janeiro, no dia dezesseis de junho do ano de mil novecentos e sessenta e dois. Pois sabia que, nesse ano, em um bar de Ipanema, Vinicius de Moraes, por incontáveis vezes, sentou para beber e admirar a beleza das tantas mulheres lindas e cheias de graça. Sabia também que o Vinicius não gostava sol, por isso, para aumentar as chances de vê-lo na rua, escolhi aparecer no inverno.
– É claro! – disse o Geraldo, ao ouvir o meu gago pedido.
Agradeci, deixei uma nota de cinquenta sobre a mesa e fomos correndo para a casa dele. Porque lá, entre a geladeira vermelha e um armário embutido, o Geraldo estacionava a máquina que permitiu meu encontro com o “Poetinha”.
– Tem certeza que deseja ir para junho de sessenta e dois? – indagou-me.
– Absoluta! – respondi e, conforme o ordenado pelo Geraldo, entrei em um sufocante e escuro espaço oval.
Lá de dentro, ainda pude ouvir o barulho das teclas que ele pressionava com força e um último e importante aviso:
– No dia vinte e sete de janeiro, às dez horas, espere-me em frente ao Cristo Redentor. Boa viagem!
E assim, sem sentir qualquer tipo de dor e sem conseguir compreender o mecanismo científico que me tirou daquela cozinha, subitamente, eu apareci pelado nas areias de Ipanema. O Geraldo se esqueceu de me avisar que, durante a viagem no tempo, todos os tecidos não humanos seriam desmaterializados.
Apesar de inverno, era um dia de temperatura agradável do ano de sessenta e dois. Mas eu precisava, urgentemente, de uma roupa. Necessitava também de dinheiro. Por sorte, bem em frente de mim, um casal fazia sexo no mar. Aproveitei que os pombinhos estavam distraídos com a prática do ato libidinoso e, sem pensar duas vezes, roubei as roupas que o homem havia displicentemente espalhado sobre a areia. E, por sorte, serviram-me perfeitamente. Com exceção dos sapatos que ficaram grandes. Mas, e daí? Só pensava em encontrar o Vinicius.
Naquele dia, o universo conspirou para que tudo desse certo. Acredite ou não, ao enfiar a mão no bolso, encontrei uma quantidade considerável de cruzeiros e um maço de cigarros quase cheio.
Corri para bem longe dali. Sabia que o cara logo terminaria o serviço e que ele não demoraria a sair do mar em busca das roupas que, naquele instante, já serviam, perfeitamente, para esconder a minha nudez.
Ao primeiro que vi, perguntei o endereço do Bar Veloso. E para lá eu fui.
Quando cheguei, o local estava fechado. Passei o dia todo esperando alguém abri-lo. Mas ninguém apareceu por lá. Acabei adormecendo na calçada. Apesar de ter passado o dia todo sem comer, não sentia fome. Também não sentia sede. Estava eufórico com tudo aquilo.
– Veloso! Veloso! Veloso! Abre essa porra! Meu uísque acabou. Estou sem meu melhor amigo – gritou o bêbado.
Porém, aquele que urrava não era um bêbado qualquer, tratava-se do Vinícius, em busca de mais um trago.
– Sou seu fã, cara! – falei para ele, após descolar as minhas costas da calçada.
– E eu sou fã do uísque. Aliás, não tem um golinho aí com você? – respondeu-me com uma nova pergunta.
– Não tenho, mas podemos comprar uma garrafa. Também estou precisando de uns goles. Onde existe um supermercado vinte e quatro horas?
-O quê?
– Um supermercado aberto o dia todo. Não tem por aqui?
– Amigo, se isso existisse, eu não estaria tentando acordar o Veloso.
– Cara, no futuro, muitos supermercados estariam abertos a este horário.
– No futuro? O que pode saber sobre ele?
– Eu sou de lá.
– Entendi. E eu sou negro – disse-me, antes de iniciar uma longa e pigarrenta sessão de gargalhadas.
– É sério!
– Do futuro? E o que veio fazer aqui, no meu presente?
– Eu vim encontrar com você, meu caro.
– Comigo? Você só pode ser louco!
– Por favor, acredite em mim!
– Prove-me!
– O que quer saber?
– Como eu vou morrer?
– Edema Pulmonar. Viverá mais dezoito anos.
– Essa é fácil. Você me viu fumando e inventou essa merda toda.
– Já sei! Amanhã é a final da Copa do Mundo e, se me contar como será o jogo, eu acreditarei em você.
Ouvir aquilo me encheu de alegria. Finalmente, dgfev online casino consegui enxergar alguma utilidade para os domingos que passei em frente à televisão, vendo programas de futebol e mesas de discussão moderadas por alcoólatras funcionais.
– O jogo será três a um para o Brasil, ou seja, a Seleção conquistará o segundo título mundial. O Brasil levará um gol aos quinze minutos, mas não se preocupe, pois, dois minutos depois, o Amarildo marcará. Aos sessenta e nove minutos, o Zito fará o segundo gol e, aos setenta e oito minutos, o Vavá fechará o placar.
– Apesar de não acreditar em você, espero que esteja certo. E, caso as coisas aconteçam exatamente como me contou, nos encontraremos aqui no Veloso, assim que o jogo acabar, para comemorarmos juntos a vitória. Agora vou voltar para casa – disse-me e me deixou sozinho.
Vi o sol nascer, tomei café em uma padaria próxima dali e fui à praia. Sentei na areia e, apesar de olhar fixamente para o mar, só conseguia pensar no quanto o Geraldo havia me proporcionado uma experiência única. Permaneci imóvel, no mesmo ponto da praia, até o jogo terminar. Ouvia o povo gritando gol e, sozinho na areia, só conseguia comemorar uma coisa: meu encontro com o “Poetinha”.
Esperei os primeiros gritos de “é campeão” e corri para o Bar Veloso. E, assim que cheguei, lá estava ele. Com um copo de uísque na mão esquerda, um cigarro na mão direita e um sorriso amplo no rosto.
– Ei, Moleque do Futuro, venha tomar um trago comigo – gritou assim que me viu.
E eu fui.
– Agora acredita em mim?
– Acredito – ele disse, enquanto, ao garçom, valendo-se de gestos, pedia um copo limpo.
– Quero lhe apresentar para algumas pessoas.
– Tom, venha até aqui. Quero que conheça o cara de quem falei no intervalo do jogo.
– Prazer, Ricardo Coiro – falei enquanto estendia a mão para o Tom Jobim.
Ele me deu a mão, mediu-me dos pés à cabeça e, antes que eu pudesse dizer o quanto o admirava, chamou-me de “filho da puta”.
– Então você veio do futuro para roubar as minhas roupas, seu merdinha?
Como eu ia saber que o cara que estava transando no mar era o Tom Jobim? – pensei, quase em voz alta.
– Desculpe-me, nunca roubei nada antes. É que a viagem no tempo me deixou pelado.
– Tom, perdoe o moleque. Nos já roubamos roupas também, lembra? – interveio o diplomata.
– É, tem razão. Mas graças a você – disse apontando para mim – o Vinicius ganhou o bolão da Copa e levou todo o meu dinheiro.
O Vinicius riu. Eu, apesar de tentar me manter sério, também ri. Apesar de atrasado, o Tom também caiu na gargalhada. Afinal, o Brasil havia sido campeão e ninguém mais estava pelado.
– Eu lhe perdoo, com uma condição: conte-me algo bom sobre meu futuro!
– Isso é muito fácil, ilustre Tom. Seu futuro será lindo. Suas canções farão sucesso no mundo todo e, em mil novecentos e sessenta e sete, gravará um disco em parceria com o Frank Sinatra.
– Perfeito! – ele gritou!
E fizemos um grande brinde.
– Ao futuro – disse Vinicius.
Depois disso, bebemos até o fígado reclamar, vomitamos juntos na calçada e até tiramos sarro da nossa própria palidez pós-vômito. E minha jornada no passado não acabou por aí. O Vinícius me deixou ficar hospedado na casa dele. Emprestou-me algumas roupas e, em noites de inspiração, até me mostrou algumas poesias inéditas.
Ele me tratou muito bem, levou-me a vários lugares e, como já era esperado, encheu meu copo incontáveis vezes.
No dia dezenove, o Vinicius me obrigou a vencer os efeitos devastadores da ressaca para, com ele, comemorar o aniversário de dezoito anos do Chico Buarque. Foi muito legal. Passamos na casa do tom, depois pegamos o Chico, depois o Toquinho, e fomos a um puteiro para celebrar. Como já era previsto: as putas só tinham olhos para os olhos do Chico. E, meus caros leitores, nem imaginam o que o menino de grandes olhos claros aprontou por lá. Acho até que, dias como aquele, até hoje, colaboram para que o Chico não goste de biografias e de expor sua vida privada.
No dia vinte e sete, às dez horas em ponto, já com saudade do que ainda nem havia deixado para trás, encontrei-me com o Geraldo e voltei para os dias de hoje. O Vinicius estava lá para me ver partir. Eu disse “Obrigado por tudo”. Ele gritou “Saravá”.
Sabe o mais louco disso tudo? Assim que cheguei em casa, para matar a saudade do “Poetinha”, abri a Antologia Poética dele. E uma coisa me chamou atenção no impresso: aquela era uma reedição ampliada no ano de mil novecentos e sessenta e três. Como aquilo era possível? Eu tinha certeza que a última reedição ampliada da obra havia ocorrido em mil novecentos e sessenta. Então, quando cheguei à última página, dei de cara com uma surpresa: havia um poema que eu desconhecia ali. Um poema chamado “O moleque do Futuro”.
O Moleque do Futuro
Ele veio lá da frente,
pra lá dos anos dois mil.
Para falar sobre a minha morte,
e de como ganharia o meu Brasil.
Ele roubou a roupa do Tom,
participou da festança do Chico,
e comigo compôs um som
que ele muito já havia ouvido.
Finalmente, sei o que é ter saudade do futuro.
Pena que não nos encontraremos mais,
pois, pelas minhas contas,
e de acordo com o que me contou,
ele não nascerá antes do meu “aqui jaz”.
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