Não está sendo fácil
Sabe, meu bem, não está sendo fácil.
Eu poderia até usar o clichê da cama vazia pra dimensionar a falta que você me faz. Mas quem saiu da nossa cama fui eu. Quem saiu da nossa casa fui eu. Quem saiu do nosso amor fui eu, pra morar na clandestinidade de um sofá, pra chorar num lugar frio e impessoal, pra me afogar num mundo de incertezas. Não sei quem sou, não sei o que quero, não sei do que gosto. Só sei o meu nome, a minha filiação, a minha data de nascimento e toda aquela parafernália que tão pouco diz sobre mim, mas que vem grafada no que dizem que é a minha identidade, mas que só me serve pra entrar em balada, pra marcar exame médico e pra fazer crediário. E eu sou muito mais do que isso. Eu quero ser muito mais do que isso.
Lembro de você todos os dias. Ao acordar e não ter para quem falar bom dia, não ter em quem dar um beijo, não ter suas costas lisas para acariciar. Ao levantar e não ter para quem preparar um leitinho, não ter para quem desejar um bom trabalho, não ter os seus sapatos no meio do caminho para tropeçar. Ao ver o cair da tarde e saber que a porta não vai se abrir, que você não vai entrar na sala com os olhos mais lindos que os meus já cruzaram, que ninguém vai ligar a TV no futebol – um tormento que virou saudade. Tudo me lembra você. A cerveja no bar, o metrô Vila Madalena, o vestido que eu usei na nossa primeira viagem. Deitar de bruços, escovar os dentes no chuveiro, a música que o Spotify acabou de sortear. O meu cansaço, as minhas lágrimas, aquele filme que eu tanto insisti para você ver. Até uma simples tupperware, meu bem, me lembra você.
Seria muito mais fácil se eu ainda estivesse aí, curtindo uma preguiça com você no sofá, reclamando das luzes que você sempre esquece acesas e do tanto de azeite que você usa para grelhar um peito de frango – reclamar, aliás, sempre foi uma das minhas maiores destrezas. Mas viver não é fácil, e esse negócio de morar dentro, mas não estar ao lado, faz parte do pacote de sofrimento que, vez ou outra, todos nós temos que aturar. Além do que, não era justo deixar você se perder e se afogar na minha confusão. Você, que sempre soube nadar em mares revoltos. Você, que sempre foi calmaria nas maiores tormentas. Você, que sempre enxergava de longe um porto seguro. Não seria justo eu, esse um metro e cinquenta e sete cheio de dúvidas e pretensões, acabar com as suas virtudes, com os seus sonhos, com as suas certezas.
Por isso me afastei. Porque, às vezes, ir embora é a melhor coisa que a gente tem a fazer. Às vezes, ir embora é a única coisa que a gente tem a fazer. E eu preciso estar ida. Até que a poeira baixe, até que a maré acalme, até que as angústias todas venham à tona e sejam, se não curadas, pelo menos compreendidas, eu preciso estar ida. Eu preciso me sentir sozinha. Eu preciso sentir dor. E já está doendo. Mais do que qualquer tombo, literal ou figurado, que eu tenha tomado na vida. Com fé e sorte, ainda vai doer, ainda vai arder, ainda vai sangrar. Mas vai criar casquinha, vai dar aquela coceirinha, vai cicatrizar. E vai ficar bonito. Vai ficar calmo. Vai ficar claro. Como consultório de médico, como dois e dois são quatro, como um dia de verão.
Como a casa cheia de lâmpadas acesas que eu tenho certeza de que você continua deixando.
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