Quando as semelhanças atrapalham mais que as diferenças

O nosso amor é tão bom
O horário é que nunca combina
Eu sou funcionário
Ela é dançarina
Quando pego o ponto
Ela termina
*
Nas questões de casal
Não se fala mal da rotina
Eu sou funcionário
Ela é dançarina
Quando caio morto
Ela empina

(Chico Buarque – Ela é dançarina)

Anna e eu se nos encontramos abruptamente. Eu não levei cinco minutos para me apaixonar. Anna demorou mais, e por mais que não seja na mesma intensidade que eu, eu acho que ela está. Mesmo ela ainda nem admitindo para si mesma que está um pouquinho apaixonada. Como eu dizia, nos encontramos, abruptamente, e nos desejamos e nos quisemos. Nos víamos e ficávamos juntos como se o mundo fosse acabar na hora do almoço. Passávamos trinta, quarenta horas juntos sem nos desgrudar. Foi uma lua de mel de cinema, durante três semanas. Mas foi aí que as diferenças – e pasmem, as semelhanças, começaram a falar alto. Afinal, como disse o Chico, eu sou funcionário, ela é dançarina.

Na verdade ela é atriz, era licença poética. Mas as diferenças – e as semelhanças – não param por aí. Enquanto eu falo por nós dois, ela cala por uma missa inteira. Eu falo o que sinto, o que acho que sinto e o que acho que um dia possa sentir. Ela não fala absolutamente nada, e não confirma se eu pergunto. Em uma das nossas últimas conversas, ela me confidenciou algumas coisas. Perguntei por que ela não havia me dito aquilo antes! E ela disse, calma como ela sempre é: “Eu não falo”. E não fala mesmo. Eu sou mais transparente que blusa branca de stripper molhada, ela é mais misteriosa e fechada que contracheque de deputado. Eu penso, repenso, rerepenso, e ela, impulsiva, pula no meu colo.

Ela é arte, eu sou mercado. Eu faço trabalhos comerciais e populares, ela disserta por horas sobre “criação coletiva”, “arte para fazer pensar” e – o horror! – “teatro de rua”. Eu quero escrever um filme pra dar dez milhões de expectadores, ela quer atuar em uma peça com pessoas nuas em um teatro obscuro e receber elogios da crítica. Meus amigos devem achar ela maluca, os dela devem me achar um idiota vendido.

“Ai, Léo, como você consegue ver essas comédias românticas chatas? Blergh!”. 

“Porra, Anna, você quer ir nessa peça num teatro pra trinta pessoas que parece um cativeiro mexicano, com todo mundo pelado sujo de sangue de galinha recitando poesia em russo enquanto se jogam no chão e puxam alguém da plateia pra ficar pelado com eles?”.

“Anna, meu programa deu 18 de audiência hoje, quase passou a Globo!”

“Léo, hoje fiz uma performance na aula, quase quebrei o joelho, ralei a barriga, beijei duas mulheres e um anão canadense, e a professora falou que adorou a minha entrega!”.

**

“Léo, para de batucar enquanto eu falo? Para e cantar enquanto eu falo? Para de mexer o pé enquanto eu falo? Abaixa a música enquanto eu falo? Para de mexer a cabeça enquanto eu falo? Para de respirar enquanto eu falo, porra!”. Eu mando sete mensagens ao longo do dia. Ela responde às sete da noite: “Oi! Tudo bem? Tava aqui lendo”. “LENDO DURANTE DEZ HORAS E NÃO OLHOU O CELULAR?”. “É”. Mas é tão fofo que eu nem fico puto. Não muito. “Tá fazendo que, Anna? Ah, vendo Almodóvar? Qual? A Pele que habito? Nossa, chatíssimo, tive que cheirar Vip Vaporub pra conseguir ver. Que? Tá achando foda? Foda pra caralho? Ahn…”. “Anna, tu tem que ver How I Met Your Mother, é muito maneira! (Descrevo a série por meia hora, enquanto ela varia entre bocejos e fingir que está interessada)”. “É? Cara, como você consegue ver essas coisas tão clichês?”.

Mas sabem o que é pior? Nunca brigamos por conta de alguma dessas diferenças. Ela são sempre motivo de risadas escandalosas e pretextos para um longo e carinhoso beijo de “para de falar merda e vem aqui, vem”. As nossas afinidades e a semelhança entre nós dois é que foram motivo de algumas (muitas) e sérias brigas. É aquela velha história, “What happens when an unstoppable force meets an immovable object?”. Em português, é algo como “o que acontece quando uma força imparável encontra um objeto imóvel?”. E a força imparável encontrou um objeto imóvel. E, apesar das afinidades incríveis, o objeto não se moveu. E quem diria que, agora, dois meses depois, estaríamos não afinando as nossas diferenças, mas sim aprendendo a conviver com as nossas semelhanças.

E pra cada vez que ela me levar pra ver alguém pelado no teatro ela vai ter que ver um filme do Rambo ou Duro de Matar comigo. Somos bem adultos.

“No ano dois mil e um Se juntar algum
Eu peço a Deus do céu uma licença
E a dançarina, enfim Já me jurou Que faz o show pra mim”

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