O minuto que mudou uma vida inteira
Foi um desses raros dias comuns que – do nada – se tornam especiais e não esquecemos tão cedo.
Era uma terça-feira. Colei em um bar junto com meu irmão. Nossa intenção era tomar cerveja e falar de futebol, mulher, etc. Pedimos a primeira garrafa e continuamos as ideias e papos.
Não lembro mais em qual garrafa estávamos, talvez 2ª ou 3ª, quando notei que surgiu um catador de materiais recicláveis por lá. Logo me vieram algumas dúvidas na cabeça e decidi levantar pra trocar uma ideia com o cara. Fui cumprimentá-lo e notei que ele ficou meio desconfiado de que eu pudesse ser mais um a tirar um sarro dele, algo assim. Ou porque eu poderia estar muito bêbado ou porque eu poderia ser um filho da puta mesmo. Ele não me conhecia, tinha o direito de achar isso.
Comecei perguntando se naquele dia ele já tinha pegado bastante coisa. Ele respondeu que sim; isso sem interromper o que estava fazendo: separando materiais entre os sacos de lixo e caixas de papelão.
Não lembro direito, mas acho que também falamos sobre quanto custava cada material, o preço do quilo do vidro, do papelão, etc. Mas, se tem uma coisa que me lembro – e muito –, é da última pergunta que fiz. A resposta que aquele cara deu mudou o que eu pensava sobre a vida.
Perguntei:
– Você já viu esses carrinhos que são pintados, todos coloridos? Têm frases grafitadas e pah. Já pensou em fazer alguma coisa assim no seu?
– Olha, cara. Eu nunca vou fazer isso, entendeu? Quem faz isso tá errado, entendeu?
Fiquei curioso pra caralho e, óbvio, perguntei o porquê:
– Seguinte, eu não sou melhor que nenhum catador, entendeu? Vou pintar meu carrinho pra quê? Pra humilhar aquele que não teve a sorte de vender tanto vidro que nem eu? Aí eu escrevo uma frase bonita e meu companheiro de carreto não sabe ler. Pra quê vou fazer essa humilhação pra ele, entendeu? Não faço isso, não. Gosto do carrinho assim e gosto de confiar no catador. Não confio em quem pinta o carrinho.
Tomei um soco na mente. Não caí porque o vento me segurou. Acho que depois amenizei o assunto. Não queria dispersar a lição que tinha aprendido ali. Ele tinha uma visão rude, sim. Chucra, sim; mas era humana. Antes de pensar nas possibilidades reais da coisa, ele pensou em não machucar seu semelhante: um catador como ele ou, até mesmo, um que poderia ter ainda menos.
E, naquele 12 de março de 2013, eu descobri algo sobre a vida. Sobre o que eu quero dela: Desisti de pintar meu carrinho. Comecei a procurar outra forma de me expressar no mundo. E meu cuidado era que essa forma não pisasse e nem humilhasse aqueles que já não têm nada. Seja nada na carteira ou esses casos em que faltou oportunidade para desenvolver diferentes ideias e conceitos sobre o mundo. Desse dia em diante eu pararia de cagar regra e entenderia toda visão como sendo possível de ser a correta. O mundo é composto disso: diversas verdades flutuando por aí.
Aquele cara me provou em um minuto que é possível se destacar apenas por ter um pensamento diferenciado, que estar em qualquer tipo de hierarquia ou destaque, de repente não vale tanto à pena se isso não for para beneficiar o máximo de gente possível.
Desconfio de todo aquele que escreve ou fala difícil. Se visualizo isso na poesia, sei que trata-se de alguém que não quer realmente revelar seus sentimentos; e poeta é o último nome que pode ser dado a quem não quer revelar sentimentos. Se visualizo isso no cotidiano, pode ser um recurso daqueles que não querem compartilhar muita coisa conosco, vide a linguagem de advogados ou políticos. Lembrando que linguagem técnica não tem nada a ver com aquela pessoa que dá diversas voltas num assunto para, no fim, te deixar com ainda mais dúvidas. Gente com sede de poder costuma fazer isso. Gostam de concentrar em si toda a autoridade que puderem.
É por isso que escrevo; porque eu cansei de ver gente que falsifica carteirinha de faculdade gritando ‘vem pra rua, vem, contra o governo’. Porque eu cansei de ver gente que faz ‘gato’ de TV a cabo dizendo que a polícia tem mesmo é que bater nos ‘vagabundos baderneiros’, se referindo aos manifestantes como um todo. Eu cansei disso tudo, gostaria que todos fizéssemos parte de uma geração de pensadores. De gente diversa e acessível. Uma geração que talvez encontre na sinceridade a melhor maneira de viver a vida.
Procuro mais gente que não queira pintar o carrinho. Alguém aí?
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