O não você já tem
Carrego uma infinita porção de “nãos”, coisa que adquiri no exato momento que nasci. Fiz o check-out do útero, escapei dos lábios da vagina materna, tomei três tapas na bunda e, antes mesmo do meu primeiro choro, recebi um pacote cheio de “nãos”.
Comigo foi assim e com você, irmão, também. Comecei minha vida sem nenhum equilíbrio e nas costas, já sentia o peso da voz que me dizia para nem tentar ficar de pé. “Não se atreva!”, berrava o meu próprio comodismo. “Não arrisque!”, falava o meu incalculável medo. Com sorte, eu os ignorei e, além de alguns pontos na testa, ganhei meu primeiro “sim”. Eu fiquei de pé e mais do que isso: joguei meu primeiro “não” no lixo.
Só assim, sem tal peso desnecessário, pude me levantar pela primeira vez. Alguns anos depois, já na escola, desejei o primeiro beijo. Morria de medo dela não me querer, afinal, eu era apenas mais entre tantos magrelos orelhudinhos da terceira série. Eu queria beijá-la, queria muito, mas não sabia como me aproximar daqueles lábios adolescentes.
Ensaiava diante do espelho, como nos filmes mais clichês, um pedido de beijo. Queria muito saber que gosto ela tinha, pois até o momento: só conhecia o sabor do Bubbaloo e dos doces feitos pela minha avó mineira. Aproximei-me dela algumas vezes, sem sucesso, pois nunca nem abri a boca quando tive a imperdível chance de falar qualquer sílaba. Ela mudou de colégio, nunca mais a vi e, até hoje, como uma espinha de peixe fincada na garganta, sinto o “não” que ela nem chegou a me dizer. Eu já tinha aquele “não” e a única maneira de ter me livrado dele, era ter feito algo em prol do “sim”, mas não fiz absolutamente nada. Não disse nada. Não fiz nem mímica.
O tempo passou e, aos poucos, fui entendendo a imensa fragilidade da vida. Percebi que meu coração não é de aço e nem à prova de gordura trans e que, cedo ou tarde, agora ou depois, eu certamente morrerei como manda o ciclo dos seres vivos. Então, impulsionado pela constante iminência da morte, tomei uma importante e maravilhosa decisão: resolvi que morreria com o mínimo de “nãos” cravados em mim. Foi a melhor coisa que fiz e graças a isso, aprendi, por exemplo, a burlar a rotina que insiste em tentar me afastar dos meus amigos.
Moro em São Paulo, cidade naturalmente opressora, na qual a distância geográfica entre as pessoas, somada à rotina robótica da megalópole, tende sempre a impedir os encontros, mas eu descobri que, mesmo diante das maiores barreiras urbanas e correndo sempre o risco de mergulhar dentro dos maiores engarrafamentos, ainda é possível transformar o “Não conseguirei tomar uma hoje” em um valioso “Pode descer, pois já estou chegando”. Saio de casa cheio de “nãos” e lotado de “talvez”, mas, de forma alguma, aceito voltar para casa sem saber se aquele monte de negações e de dúvidas poderiam ter sido transformadas em ao menos um “sim”. Muitas vezes, dá completamente errado e a menina da balada, com um sonoro tapa, reforça o “não” que já tinha antes mesmo de conhecê-la, mas e daí? Eu arrisco, pois apesar de um grande clichê: eu tenho certeza que a vida é linda e infelizmente curta. Não tenho medo da morte, nada disso! Tenho apenas um imenso pavor de acabar sem saber se aquele monte de “nãos” que recebi após o parto, poderiam ter virado ao menos um “sim”. Tenho no peito,tatuada, a frase Still Alive, para me lembrar, todo dia, que ainda estou vivo, ainda.
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