O terceiro elemento
Mauro e Letícia se conheceram no trabalho. Nada demais. Ele era do financeiro, e ela do RH. Na verdade, se conheceram quando ela o entrevistou para o cargo de “analista financeiro”. Aprovado e contratado, Mauro contou com a solidariedade de Letícia ao convidá-lo para almoçar com ela, depois de vê-lo almoçar sozinho por três dias. Os almoços puxaram conversas, que viraram longos papos, que combinavam com um sorvete, que pediam um cinema, que resultou em uns beijos, e em dois meses estavam namorando. Eram um casal “fofo”, como descreviam os amigos. Ela, social e falante, ele, tímido e caladão.
Vieram as afinidades, as brigas inerentes a todo relacionamento, os pés gelados se esquentando no frio, e todos os passos normais de um namoro normal. Até o dia em que Letícia lhe confidenciou, corriqueiramente como quem pergunta as horas em um elevador de manhã, que sempre teve a fantasia de fazer um ménage a trois, mas nenhum namorado nunca aceitou. Se Mauro não estivesse com a mente ocupada demais pensando que sua namorada acabara de lhe confidenciar que gostaria de ir para a cama com ele e com outra mulher, ele poderia até ter se espantado com o fato de nenhum namorado dela nunca ter aceitado isso. Depois de uns minutos de conversas, estabeleceram os termos e começaram a procurar o “terceiro elemento”. Letícia tentou cunhar o termo “terceiro membro”, mas Mauro prontamente rejeitou. Combinaram as proibições: fazer algo com o terceiro elemento sem o parceiro presente, acordado ou participando; falar que a outra mulher é mais gostosa que a Letícia; dormir os três juntos; se entreter tanto com a outra mulher a ponto de esquecer o Mauro. De resto, podia tudo, e, caso surgisse um impasse, resolveriam na hora, com a outra pessoa tendo o Voto de Minerva.
Depois começaram a combinar como seria a busca pela outra pessoa. Ficou combinado que ambos poderiam sugerir nomes, mas Letícia faria a abordagem. Também não podia ser amiga íntima de nenhum dos dois, nem ser uma profissional – o que causaria bastante ciúme em Letícia. Depois de algumas sugestões de ambos os lados, conheceram, uma noite, uma amiga de uma amiga de Letícia, e se deram bem logo de cara. Ela era bonita, descolada, inteligente, boa de papo, e de cara ficou claro que ela havia agradado aos dois. Por coincidência, ou “força do destino”, como insistia Mauro, a nova amiga, de nome Anna, trabalhava em um banco na rua onde eles trabalhavam. Almoçaram juntos algumas vezes, os três, e, depois de perceberem uma intimidade maior, Letícia resolveu dar o bote. Em um happy hour com muitas bebidas coloridas e pouca comida, confidenciou a Anna a fantasia dos dois. E Anna, como era previsto, prontamente aceitou.
Mauro recebeu a notícia do sim de Anna mais feliz que criança que chega na escola e descobre que o professor faltou. Combinaram um queijos e vinhos na casa de Mauro. Depois de muito vinho e pouco queijo, Letícia, para o total e completo embabascamento de Mauro, partiu para a ofensiva e voou para cima de Anna, que retribuiu as carícias, e assim se deu início àquela noite louca e desvairada. A intimidade e o entrosamento entre os três eram tamanhos que quem olhasse de fora demoraria pelo menos dez minutos para contar três pessoas ali. Eram pernas, mãos, pés, braços, bundas, bocas, tudo pra lá e pra cá, sem censura, sem vergonha e com muito vinho. E pouco queijo. Por fim, dormiram juntos os três e já quebraram uma regra. No dia seguinte, acordaram sem nenhuma ressaca moral, Anna foi para a sua casa e a vida dos três seguiu normalmente. Por dois dias.
Dois dias depois Mauro pensava em como falar para Letícia que gostaria que aquilo se repetisse, sem despertar ciúmes. Mas mais uma vez o destino salvou-lhe a pele: Letícia lhe telefonou no meio da tarde para dizer que havia almoçado com Anna naquele dia e a convidara para, em suas palavras “repetir a dose”, no dia seguinte. Avisado e concordado, no dia seguinte se encontraram e repetiram a dose. Dessa vez, com mais intimidade, vontade e menos censura. E mais queijo porque da primeira vez Mauro ficou com uma azia danada depois de beber tanto vinho sem comer nada. Mais uma vez dormiram juntos, e dessa vez, mais cansados. Mas no dia seguinte, Anna não acordou e foi embora. Eles acordaram e foram comer à padaria da esquina comer “um croissant divino”, nas palavras de Letícia. Croissant experimentado e aprovado, deixaram Anna no ponto de ônibus.
E isso se repetiu mais umas seis, sete vezes. Em menos de duas semanas. Mauro já até estranhava a casa vazia nas noites em que Letícia não convidava Anna para aparecer. E a evolução era palpável, sem trocadilhos. Em um dia Anna ficou para o café, depois para o almoço, depois para um filme depois do almoço, depois para dormir lá de novo “em um fim de semana de loucura”, de acordo com Letícia, culminando em quatro dias sem que Anna voltasse para casa, em um feriado prolongado. E tudo naturalmente, sem forçar nada. Até que um dia, em um restaurante, ao ver uma cena romântica na TV, Mauro beijou Letícia. E depois beijou Anna. E ninguém notou nada de errado. E na hora de se despedir, ambos, Mauro e Letícia, beijaram Anna na boca no momento em que esta subia no ônibus. E mais uma vez não perceberam nada errado. E todos acharam igualmente normal quando Letícia pegou o celular de Mauro e mandou uma mensagem para Anna, escrito: “estamos com saudades”, uma noite.
Mas nada disso – repito, nada – foi tão decisivo para que esta relação desse um próximo passo quanto o dia que os três se encontraram, viram filme, jogaram Banco Imobiliário, comeram torta de banana, café, viram mais filme e foram dormir. Sem fazer sexo. E no dia seguinte, tudo se repetiu, mas com um sexo carinhoso e fofo no fim da tarde. E mais uma noite dormindo juntos. A partir deste dia, eles já eram três. Quando um chamava o outro para sair, o outro chamava a Anna. Quando um ia para a casa do outro, já chegava lá com a Anna à tiracolo. Iam ao cinema, ao parque, almoçavam, jantavam, faziam tudo juntos. Mas no dia em que Letícia estava doente e Anna foi à casa de Mauro sem ela, se percebeu que era a hora de os pingos serem colocados nos is.
– Ah, amor, não achei nada demais. A gente faz tudo junto, vocês saem sozinhas. Desculpa, não sabia que você ia ficar chateada…
– Mas aí que tá, por isso que te chamei pra conversar: eu não fiquei chateada. Só me fez parar pra pensar no que tá acontecendo, né. A gente tá praticamente namorando a Anna, cara.
– Amor, que exagero! A gente só transa com ela.
– Mauro, a gente transa com ela, vai ao cinema com ela, janta com ela, almoça com ela, vê TV com ela, toma café da manhã com ela. Você sabia que já tem uma escova de dentes e três calcinhas dela no seu armário?
– Não!
– Pois é, mas tem.
– Mas isso não tem nada a ver, amor, é que ela vai sempre lá, mais fácil mesmo deixar lá.
– Mauro, qual o telefone dela?
– 97453-8321
– Qual o nome da mãe dela?
– Dona Denise
– O que ela queria ser quando era criança?
– Delegada.
– Que dia ela faz aniversário?
– 25 de julho.
– Você sabe quando tempo você demorou pra decorar o meu aniversário, Mauro? Oito meses. E mesmo assim você sempre chutava três datas.
Mauro não sabe o que falar.
– Eu não tô chateada, Mauro. Eu adoro a Anna, ela é fofa, bonita, gosta das mesmas coisas que a gente. O problema é que eu acho que gosto dela até demais.
– Porra, não vai dizer que você vai me largar pra ficar com ela??
– Claro que não, seu animal!
– Então não tô entendendo.
– Você também não gosta dela?
– Gosto
– Você namoraria com ela?
– Ih, amor, sei lá. Eu te amo, nem penso nisso. Sei lá.
– E se eu falasse que eu queria tentar namorar com vocês dois ao mesmo tempo?
-Claro que eu namoraria ela, amor!
Depois de um longo e apaixonado beijo, decidiram chamar Anna para uma noite especial e fazer o pedido. Não era algo usual, não era como pedir alguém em casamento ou em namoro. Eles não sabiam se ela aceitaria. A campainha tocou, era Anna. Ela entrou e se espantou com a mesa posta, arrumada. Velas, meia luz. Ela logo se espantou.
– Pô, pessoal, vocês não armaram isso tudo pra me dar um pé na bunda não, né? Pra eu não me sentir mal?
– Não, calma, é que… Antes de terminar a frase, Letícia foi interrompida por uma nervosa e tremulante Anna.
– Eu sabia, cara! Sabia que não ia dar certo, a gente tava muito juntos! Filminho, jantar, sabia que ia dar confusão! Mas tá bom, desculpa, nem precisa falar nada. Eu não vou mais incomodar vocês.
Mauro se levantou e pegou no rosto de Anna. Letícia chegou perto e falou, romanticamente:
– A gente quer que você namore com a gente, sua boba.
Anna ficou mais estupefata que menino de 11 anos vendo a calcinha da professora de inglês que sentou em cima da mesa. Ela não sabia o que falar. Mas aceitou, claro! E naquela noite, dormiram juntos como casal pela primeira vez, ou seja lá como se chama um casal de três pessoas. O primeiro fato a ser notado era a inveja que os homens tinham de Mauro. Letícia era loura, alta, pernas esguias e belíssimas. Anna era ruiva (natural, amigo, natural), baixinha, pernas grossas e uma bunda de fazer andar o trânsito de São Paulo. Alguns achavam que deviam ser parentes de Mauro. Outros achavam que era pegadinha e procuravam a câmera. Havia também os que duvidavam e desafiavam, incólumes: “beija as duas então”. E Mauro beijava, os três morriam de rir.
Faziam tudo juntos, indiferentes aos olhares de estranhamento e às risadinhas. Eram felizes, os três. Mauro tinhas duas mulheres, e as mulheres tinham um homem, uma mulher e uma amiga. O que mais poderiam querer da vida? Nas festas de família – e agora eram três as famílias – eram a sensação. Todos perguntavam como era. Alguns achavam uma pouca vergonha, outros (quase todos) invejavam Mauro, outros não deixavam as crianças perto deles. E eles lá, felizes. Com seu melhor amigo advogado Mauro conseguiu oficializar, com um juiz, a união estável dos três, e em menos de 3 meses foram morar juntos. Tudo corria maravilhosamente bem, excetuando-se problemas cotidianos como uma cama de casal ser pequena para três pessoas dormirem todos os dias, quem deita no colo de quem para ver TV etc. Com a união estável oficializada, eram realmente um casal. De três. E foram o primeiro caso no Brasil de uma união estável legalizada entre três pessoas.
Combinaram que teriam pelo menos dois filhos, um com cada uma das mulheres. Combinaram também que, dali em diante, toda discussão seria sobre os três, nunca discussões sobre as relações entre somente dois deles. O sexo somente entre dois deles era permitido, mas desde que o outro não quisesse participar por vontade própria. A mesma regra valia para idas ao cinema, teatro, jantares etc. A data de início de namoro entre Mauro e Letícia fora cancelada, e agora a data do começo do namoro era do dia do “sim” de Anna para os dois. Tinham agora menos problema do que tinham quando era somente Mauro e Letícia. Não havia ciúmes nem nada. As pessoas torciam o nariz, mas eles as ignoravam solenemente.
Comemoraram um ano, dois anos, cinco anos, e viajaram para Bali para comemorar dez anos juntos. E um “casal” de três pessoas de quarenta anos era ainda menos corriqueiro do que quando tinham trinta. Mas eles continuavam felizes e alheios. Ainda mais com os dois filhos – cada um a cara de cada mãe, e ambos lembrando o pai. A menina, de três anos, se chamava Jéssica. O menino, de sete anos, se chamava Douglas. Ele, ruivinho, ela, loura que nem uma princesa da Disney. E na escola, falavam de suas duas mães como se fosse a coisa mais normal do mundo. E era, pelo menos para eles. E cresceram, envelheceram, e foram muito felizes. Tirando o prejuízo que era ter que comprar dois presentes e convencer os professores a separar duas cadeiras só para elas no Dia das Mães, eram uma família bem normal. Bem normal como qualquer outra família “normal”. Ah, e no sofá, Mauro se senta no meio, e Letícia e Anna deitam uma para cada lado. Não se pode ter tudo na vida.
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