Quando for doer, não me aponte o dedo, me aponte um filme
Pra mim o cinema é um espelho desobediente, a gente encontra ali a resposta do inesperado, um conselho que é como um tiro às cegas, que nos acerta sem querer como uma cura acidental. Muitas vezes, melhor do que dar um bom conselho, é dar um conselho sobre onde encontrá-lo. Quando não tenho a melhor palavra dou um abraço ou indico um filme, quando alguém sente uma aflição desconhecida o meu conselho também é esse: vá ao cinema. Acredito nesse diálogo entre nós e o acaso, e já perdi as contas de quantas vezes achei a resposta que precisava num filme aleatório que não me prometia nenhuma fórmula infalível, apenas uma boa distração.
Insisto em dizer que o cinema é também tudo o que vem antes e tudo o que vem depois. Gosto da cadeia de acontecimentos que nos levam a ele, do humor de antes, de quem escolhemos para ir junto, gosto de olhá-lo também como um esconderijo secreto. Sonho em uma dia encontrar alguém conhecido na porta de uma sala e por pura curiosidade perguntar: “ você está fugindo de onde?”. Não que ele seja o abrigo dos medrosos, mas eu o encaro como uma injeção de coragem, um respiro cotidiano em que a mente interage com outro ponto de vista e ele pode ser mágico ou te dar uma baita pancada no estômago. Eu não vou ao cinema apenas para me distrair, pra ouvir que eu tenho razão, vou ao cinema pra sentir algo, mesmo que não seja bom. Sentir algo é estar vivo, é aprender sobre as modalidades da vida, mesmo que pelo desconforto. O cinema nunca é tóxico, ele pode tanto passar a mão na sua cabeça quanto puxar-te os cabelos, depende mais do que você procura do que ele ser ou não bom.
Ouvir verdades do cinema é mais fácil, ele não nos acusa, mas nos mostra onde estamos ou onde poderíamos estar sem que tenhamos a obrigação de reagir. E então reagimos, apenas por dentro, gritamos em silêncio. Confesso que quando preciso dizer uma verdade que possa ofender alguém eu a camuflo por essa solução intermediadora. Quando for doer, não me aponte o dedo, me aponte um filme. É que um filme tem em si a vida acontecendo sem te cobrar pelos seus erros, é pessoal, mas não é pessoal. Ele ironicamente nos olha no olho sem exigir satisfações, indicar um filme é um presente que nunca sai caro. O cinema é uma pessoa, são várias pessoas, são pessoas ao lado de pessoas espiando a vida de pessoas contando alguma experiência. O cinema é então uma experiência pessoal sobre trocas de experiências pessoais.
Por que eu acho tudo isso? Porque eu já usei o cinema para responder a diversas situações reais, porque o cinema é feito da matéria-prima do cotidiano e mesmo quando aquilo é fantasia, ela no mínimo foi imaginada por alguém de carne e osso. No cinema eu não quero a verdade, eu quero o imaginário, a verdade que vem da mentira, eu quero brincar sem me queimar, eu quero que um personagem me conte como deu a volta por cima, eu quero torcer tanto pelo super-herói a ponto de ter a certeza de que sou ele ao término da sessão, eu quero me decepcionar com o final porque a vida é também uma quebra de expectativas.
Use e abuse do seu histórico de filmes, é uma boa desculpa pra puxar assunto, pra mudar de assunto, para trazer magia ao assunto. O cinema é como passear com um cão filhote pelo parque: um mágico pretexto de ligação que não se importa em se sentir “usado”. Na vida a gente começa trocando figurinhas e mais tarde passamos a trocar filmes, o cinema em esfera social representa um importante painel de cruzamento de afinidades. Ter visto o mesmo filme que você não nos faz iguais, mas nos faz lembrar que em algum momento sorrimos pelo mesmo motivo. Por outro lado, um bom filme não deixa de ser uma informação privilegiada que você só divide com quem quer. Pode rolar de você sentir ciúme de um filme e não querer dividi-lo com aquele seu frenemy. Quem nunca?
Olhe pra sétima-arte como uma previsão do tempo generosa, ela te prepara pro amanhã sem que você perceba, em algum momento você irá usá-la sem querer. Ela simula sem prometer datas, ela nos tira de algum lugar e nos coloca em outro, não melhor, mas diferente. Com ela podemos pular atitudes tóxicas sem nunca termos de fato as vivenciado. Eu não só agradeço ao cinema quando um filme me ensina algo, eu agradeço a quem me indicou. Foi essa pessoa que me levou até lá. Gratidão cinéfila é um exercício que não dói, não é obrigatório, mas que quer dizer um monte de coisa: quer dizer que você leva em conta a opinião de alguém, quer dizer que outros também nos ajudam pela intenção e não só pela palavra certa, quer dizer que alguém te deu de presente um passaporte pra magia sem te cobrar pela diversão. Quer dizer que você pode retribuir da forma mais deliciosa possível: indicando outro filme.
O cinema é uma sábia velhinha que lhe cede uma poltrona confortável e te conta uma história. Em “Amelie” aprendi a detectar a magia do lúdico nas pequenezas cotidianas, em “Her” aprendi que não estou sozinho nessa de estar sozinho, em “Peixe Grande” aprendi que a mentira tem perna curta, mas pode também ter cauda de sereia, em “O lado bom da vida” eu aprendi que gritar socorro em dois é uma forma hábil de dividir uma solução, em “Como se fosse a primeira vez” aprendi que repetir carinho é uma forma cuidadosa de deixar o amor acordado. Com o cinema a gente aprende muito sobre como olhar a vida sem o cinema.
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