Sobre cachorros que dormem em camas e seres humanos que dormem na rua

Já vesti o colete a prova de balas. Porque sei que hoje, meu bem, hoje vem.

Sabe, não gosto de criar desafetos. Por isso, ponderei muito antes de escrever sobre isso. Muito mesmo. E ainda assim, é provável que não tenha sido suficiente. Tenho certeza absoluta de que se eu escrevesse a favor da pena de morte, da homofobia, do racismo ou de qualquer atentado à vida e à integridade humana eu faria menos inimizades. E desconfio de que se eu ateasse fogo ao metrô às plenas seis da tarde da segunda eu também faria menos inimizades. Mas o motivo que me faz abrir essa discussão com cinco pés atrás não é nenhum desses. É a onda do “quanto mais eu conheço os humanos, mais eu gosto do meu cachorro”, também conhecida como “prefiro bicho a gente”.

Vejam bem. Não estou aqui para ditar as suas preferências, muito menos para incitar que você deixe de amar o seu cachorro. Concordo plenamente que eles precisam de muita atenção e muito cuidado. E confesso que já amei de verdade um bichinho: o Pavarotti, calopsita que chegou em casa fugida, foi embora igualmente fugida e me deixou um buraquinho no coração, carente dos trezentos e setenta e quatro “fiu-fius” diários que ele fazia para mim mesmo quando eu estava descabelada, babada e com o olho cheio de ramela. A materialização do easy come, easy go na minha vida.

Mas saudosismos e nostalgias à parte, fico um pouco assustada quando olho ao redor. É “ajude o Totó a arrumar um lar”, é divulgação de feiras de adoção de animais, é potinho com ração para o cachorrinho de rua. O que seria lindo, maravilhoso e delícia cremosa se, das mesmas ~boas almas~, não partissem machismos como “tá de roupa curta, então merece ser estuprada”, homofobias como “esse daí tem que apanhar pra aprender a ser homem” ou racismos como “se preto não caga na entrada, caga na saída”. E se você também não se assusta diante de uma coisa dessas, me desculpe, mas há algo de bem complicado nisso.

O ser humano é um ser social. Um animal que se diferencia dos outros não só pelo “telencéfalo altamente desenvolvido e polegar opositor” – como diz o documentário Ilha das Flores, que inclusive vem bem a calhar nessa conversa –, mas também (e talvez principalmente) pela capacidade de empatia, conceito psicológico brilhantemente explorado pelo Fred Mattos nesse texto aqui. A empatia, mais do que uma sensibilidade, é um mecanismo de sobrevivência. Se o outro está em uma situação deplorável, a minha empatia vai me impulsionar a tentar melhorar – ou pelo menos me esforçar para não piorar – a situação dele, e assim garantir a sobrevivência de alguém que é meu par.

É claro que podemos sentir empatia por outras espécies – como vocês provavelmente sentem por cachorros e eu sinto por aves. Chorei com as fotos da cacatua da Hebe Camargo, juro. Mas acho que, a partir do momento em que a gente tem mais empatia com outra espécie do que com a nossa própria, é chegado o momento de olhar com mais cuidado para nós mesmos e para quem está ao nosso redor e entender por que isso acontece. E não aceito argumentos como “porque cachorros só sabem dar amor”.

Ou melhor, até aceito. E o uso ao meu favor. O seu cachorro, depois que leva uma bronca porque fez xixi fora do jornal, muito provavelmente vai abaixar a cabeça, deitar no pé do sofá meio cabisbaixo e, cinco minutos depois, vir até você pedindo um carinho ou querendo brincar. Lindo comportamento. Sério, sem ironia. O mundo seria muito mais incrível se toda briga se revertesse em um afago cinco minutos mais tarde. Mas acontece que, justamente por causa do tal do telencéfalo altamente desenvolvido, somos muito dotados de comportamento emocional e de capacidade de comunicar. E não costumamos ficar quietos quando tomamos uma bronca, um tapa ou algo do gênero. O que me leva a crer que muito do “prefiro bicho a gente” vem do fato de que lidar com um cachorro é mais fácil, já que ele não discorda, não compete, não argumenta e não revida na mesma moeda. E como vovó já dizia, o caminho mais fácil nem sempre é o que vai trazer melhores frutos.

Outro motivo provável pelo qual as pessoas se mobilizam por animais em situações difíceis, mas pouco se importam se o mendigo da rua ao lado vai morrer de sede ou de fome é aquela nossa tendência polianística de fingir que tudo que é ruim não existe. Minha TV de led 3D, full HD e 42 polegadas existe, mas o mendigo não. Meu diretor, que passa todo engomadinho pelo escritório, existe, mas o gari suado e deselegante não. O castelo de Caras e toda a sua futilidade espetacular existem, mas a Cracolândia não. E como eu vou me preocupar com algo que não existe? Coisa de esquizofrênico, não é mesmo?

Teorias, hipóteses e probabilidades à parte, não deixe de amar o seu animalzinho ou de cuidar dele. Nunca. Mas antes de se julgar o defensor supremo dos animais, não se esqueça de que o menino de rua para quem você fechou o vidro do carro, o casal gay que você ofendeu, a menina em quem você passou a mão e a sua empregada nordestina, que você insiste em chamar de mula, também são animais. De um zoológico onde falta amor, compreensão e, acima de tudo, empatia.

Nota da autora: pra refletir, mas sem perder o bom humor e o sarcasmo, deixo aqui um vídeo dos melhores vídeos do Porta dos Fundos:

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