Carta para um filho que ainda não veio
Filho,
Você ainda não veio ao mundo. E talvez até nem venha – ninguém sabe do amanhã. Se tudo correr conforme os planos, você vem. Num dia ainda distante pra dedéu, mas vem. Sem livro com significado de nomes, sem enxoval cheirando a amaciante, sem aquele monte de foto de você crescendo na minha barriga. E quando vier, que venha de verdade. Que venha como um tufão, arrastando angústias, ansiedades, sofrimentos e também um pouquinho do meu conforto. Que venha como uma canção, agitando os dias muito parados e acalmando os momentos de quase loucura. Que venha como uma brisa de verão, que alivia e acaricia a gente nas situações acaloradas. Que venha, enfim, do jeito que for.
Pra ter saúde a gente sempre reza. Pra ser ajuizado também. Bonito, inteligente, carismático, carinhoso, sagaz, bom caráter… Sabe aquele monte de atributos que alguns têm, outros nem tanto? Aqueles, que tornam a vida de qualquer ser humano um pouquinho menos difícil? Eu torço para que você os tenha, meu filho. Mas Deus, às vezes, é um cara gozador e adora brincadeira, como bem disse Chico. E pode fazer de você um grande azarado. Daqueles que nem porta-guardanapo em bingo de quermesse ganham. Ou, por um erro de receita, alguém não tão provido de beleza exterior – que, infelizmente, meu filho, ainda é o que mais conta nesse mundo. Ou – para o sofrimento de qualquer mãe – um grande filho da puta, com o perdão da ofensa a mim mesma. Daqueles que levam Maquiavel a sério demais e agem como se os fins justificassem quaisquer meios.
Mas que você, meu filho, seja diferente. De um grande filho da puta, de mim, do seu pai, dos meus pais, dos meus amigos. Dos seus amigos. Da maioria. Que você não siga padrões, se assim o quiser. Porque padrão é coisa inventada por gente que tem medo. Medo do que nós somos, medo do que nós podemos ser, medo da nossa ousadia. Que você seja menino e use rosa. E lave a louça do almoço. E odeie futebol. E dance. E não se envergonhe caso queira cursar faculdade de moda. E use cabelos compridos e brincos nas orelhas. E beije meninos, se isso o fizer mais feliz. Ou que você seja menina e use azul. E jogue futebol. E tenha cabelos curtos. E não saiba andar de salto alto. E goste de sexo. E não se intimide caso queira estudar engenharia naval. E não sinta tesão por homens, caso isso a faça feliz.
Que você, aliás, seja feliz. Sem mesmo entender o que é felicidade – mamãe poderia viver sete vidas que jamais entenderia. Mas que sorria a cada vez que aquela música de que você gosta tocar no rádio. Ou quando a previsão do tempo indicar chuva e você abrir a janela do seu quarto e se deparar com um sol claro e quentinho. Ou quando você abrir o freezer, vir um pote de sorvete, achar que é feijão, abrir e constatar que é sorvete mesmo. Que você saiba dar valor às coisas simples. A um beijo de mãe – que pode ser a pessoa mais chata do mundo, mas que sempre vai zelar pelo (que ela acha que é o) seu bem. A um domingo na casa da avó – momento que deveria ser decretado patrimônio histórico, que é pra ninguém colocar a mão. A um feriado em que se pode dormir até tarde – pra tentar compensar as tantas noites que você passará em claro trabalhando ou estudando ou até mesmo cuidando de alguém que você ama..
Que você, acima de tudo, ame e tenha um amor. Que não precisa ser o maior da sua vida. Nem imortal, nem infinito, nem mais genuíno do que o de Romeu e Julieta. Mas que mude a sua vida. Que, pelo menos por um quarto de segundo, o faça entender que o melhor lugar nunca foi um lugar. Mas que, antes disso – e por que não depois? – você sinta um pouquinho de dor – independente de qual seja a causa raiz. E que você caia. E se levante. E tenha a coragem de, mesmo depois de repetidos tombos, erguer a cabeça, se olhar no espelho e ver o quão bonito o seu rosto continua, a despeito das cicatrizes. Porque é na provação que a gente amadurece.
E que você amadureça. E envelheça. Mas que cuide sempre e muito bem da sua alma e do seu corpo. Que é o seu templo. Mas que não tem que ser sarado, gostoso e depilado para ser bonito. Que pode ser gordinho, cheio de dobrinhas. Que pode ser magrelo, com os ossinhos saltados. Que pode até ser todo desenhadinho, assim como o da mamãe. Mas que seja somente seu – independente do comprimento da saia que você use ou do horário da noite em que você está perambulando por aí. E que ninguém ouse encostar nele se você não quiser, que é aí que a mamãe vira um bicho.
Coisa de mãe, essa de tentar amenizar sofrimentos. E talvez seja sina de mãe entender que, por ser humano, todo filho também está fadado a uma jornada que, mais dia menos dia, culminará no fracasso. Talvez não no fracasso de não ter sido bem sucedido em uma das milhões de tarefas que temos que cumprir durante a vida. Mas, certamente, no fracasso de, um dia, ter que deixar o palco, mesmo se o nosso espetáculo ainda nem tiver chegado perto do tão ensaiado clímax.
No que eu puder, meu filho, eu prometo amenizar a sua dor. E no que eu não puder, que pelo menos eu possa suportar as suas lágrimas.
De sua mãe, que ainda não existe. E que, talvez, nem venha a existir.
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