Ensaio sobre a solidão
Olho pela janela semiaberta. Não é inverno, mas o frio fora de época castiga, e o vento, impune, congela cada extremidade do meu corpo. É noite, quase madrugada. A lua está bonita, mas imponente demais pra quem não tem com quem se esquentar. A cidade, que sempre pareceu distante, hoje se faz presente em todo e qualquer feixe de luz que invade o quarto e ilumina a cama. Vazia.
Aonde está você agora além de aqui, dentro de mim? Renato Russo nunca me representou, mas hoje me traduz. Dentro de mim, ainda há você. Ainda há cada pedaço de você. Cada fio de cabelo seu que estampa como arte abstrata os meus lençóis claros. Cada mordida sua que desenhou em mim o mapa do que já foi o seu território. Cada nota do seu perfume barato que impregna meu travesseiro. Seu sorriso meio torto a cada vez que eu esquecia a porta destrancada à noite. Sua complacência a cada vez que eu esquecia o feijão no fogo. Sua decepção a cada vez que eu me esquecia de você, depois de algumas doses nalguma noitada dalgum bar dessa cidade.
Eu, que sempre fui mestre na arte do esquecimento, hoje voltei a ser aprendiz. Tento, mas não dá. O que é tentar esquecer senão lembrar?, divago eu, absorta em cigarro, uísque com gelo e lembranças. Do que, talvez, não volte nunca mais. E isso é o que mais fere: o talvez. A incerteza. A iminência. A possibilidade. Porque é na esperança de um talvez que a gente perde o humor, a dignidade, a festa no sábado à noite e as pontas das unhas – sempre elas, pobrezinhas. É nessas horas que a gente percebe que o “não” é mais solidário do que um “talvez”. E que a repulsa é, de longe, menos nociva do que a indiferença.
Hoje estou vulnerável. Porque me agarraria a qualquer coisa – qualquer coisa – que me livrasse do seu fantasma. Pelo menos por um minuto. Um colo de mãe, uma barra de chocolate, um amor breve de metrô. Um novo vício, uma nova mania, uma nova preocupação. Saio da janela por um momento e me olho no espelho. Envelheci dez anos ou mais nesse último mês. Agora é Humberto Gessinger. Que também não me representa, a não ser em frente a esse espelho. O roupão puído e quase encardido cobre um corpo sem cor, sem luz, sem vontade. Os cabelos continuam impecáveis – ah, a vantagem de se ter cabelo liso – e contrastam com um rosto feio, enrugado, cansado. O chinelo, quase arrebentando, continua cumprindo a função de amaciar os meus passos. Mas como prosseguir, se você me largou descalça, em meio a uma estrada de brasa e cacos de vidro?
Não sei. Já não sei de mais nada. Já não sei quem eu sou. Já não sei quem você é. Já não sei quem nós fomos. Sei que houve retratos, cartas, planos e juras. Mas e nós, houvemos? Talvez, sim. Talvez, não. E volto ao domínio doloroso da incerteza. E volto aos braços da tristeza. E volto, contrariada, ao tabuleiro da vida. Pra jogar o jogo da solidão.
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