Já ri mais. Hoje eu rio menos.
Já chorei mais. Hoje eu choro menos.
Tem um filme de chorar me esperando aqui no Netflix, mas a fome aperta, e eu preciso quebrar uns ovos pra dar um jeito nisso. Tem um depoimento de chorar me esperando aqui no inbox, mas olho pra minha barriguinha de chope e preciso fazer uns abdominais pra dar um jeito nisso. Tem um homem numa situação de chorar aqui na sarjeta, mas o cecê que toma conta da gente nesse verão também me assola, e eu preciso dar um jeito nisso.
Eu sei que chorar menos talvez não seja assim tão bom. Mas a culpa é da sordidez desse mundo, que me ensinou que lágrima, por mais cristalina que seja, não lava roupa suja. Então chorar é que se foda.
Já ri mais. Hoje eu rio menos.
Tem um livro de história em quadrinhos do Calvin me esperando ali no armário de infância, mas a demanda do cliente que paga meu salário me chama, e eu preciso dar um jeito nisso. E tem aquela história do monstro embaixo da cama me esperando no livro de história em quadrinhos do Calvin, mas ganhar dinheiro é mais urgente, e eu preciso dar um jeito nisso. Tem uma mesa de amigos com boas histórias me esperando ali no bar, mas o telefone me chama – ih, é o número do chefe – e eu preciso dar um jeito nisso.
Eu sei que rir menos talvez não seja assim tão bom. Mas a culpa é da sinceridade excessiva desse mundo, que me ensinou que riso, por mais verdadeiro que seja, não paga conta no final do mês. Então rir é que se foda.
Já abracei mais. Hoje eu abraço menos.
Tem uma irmã me esperando pra afogar as mágoas no boteco, mas o conforto do meu sofá me tenta, e eu preciso me entregar pra dar um jeito nisso. Tem um pai cheio de afagos pra me fazer, mas as nossas diferenças ideológicas são tão grandes, que eu preciso evitá-lo pra dar um jeito nisso. Tem uma mãe sempre de braços abertos pra me receber ali na casa dela, a pouco mais de 40 quilômetros da minha, mas o trânsito é desumano, e alguém precisa dar um jeito nisso.
Eu sei que abraçar menos talvez não seja assim tão bom. Mas a culpa é da crueldade desse mundo, que me ensinou que abraço, por mais caloroso que seja, não tem o poder de dar o que se quer ou de trazer de volta o que já se perdeu. Então abraçar é que se foda.
Já temi mais. Hoje temo menos.
Tem uma barata me chamando pra duelar lá na sala, mas tá chovendo, a janela do quarto tá aberta, e eu tenho que dar um jeito nisso. Tem a vista mais linda da cidade a 165 metros de altura, mas a cerveja é muito cara, and I have to make money pra dar um jeito nisso. Tem um homem armado à espreita aqui na rua, mas a sapatilha tá machucando meu pé, e eu tenho que parar no próximo toldo pra dar um jeito nisso.
Eu sei que temer menos talvez não seja assim tão bom. Mas a culpa é da impiedade desse mundo, que me ensinou que medo, por mais genuíno que seja, não preserva vida nenhuma na hora do vamovê. Então temer é que se foda.
Já vivi mais. Hoje vivo menos.
E viver é que se foda. Afinal, existir é que é a bola da vez.
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