Maria, minha Maria
Casei com a Maria esses dias. Aquela menina de sonhos grandes e mãos pequenas. De lábios finos e sobrancelhas arqueadas. Maria era a menina mais delicada da sala, daquelas que apontava o lápis dentro do lixeiro e assoprava de forma graciosa os farelos do apagar da borracha. Maria era esperta e sorridente, usava laçarotes na cabeça e meias compridas do tamanho do seu sorriso, naquele tempo, metálico. Como toda menina jeitosa Maria sentava nas escadas do colégio com as pernas semitortas, encostando os joelhos e acumulando as migalhas do seu pão com geleia de damasco entre o vão da sua saia xadrez. Ela adorava damasco. E saias.
Já eu era um menino ordinário, mas não ordinário no sentido de vulgar, mas ordinário no sentido de comum. O que ela veria em mim? Tão desengonçado, com um sorriso torto e quatro graus de miopia. Nem eu sei, e por segurança e confiança na possibilidade de um dia ganhar um repentino sim, nem queria saber.
Quando casei com ela percebi o quão gostoso é ser o sonho da mulher dos seus sonhos. Escolhemos a dedo os estofados da nossa casa e determinamos que na parede do nosso quarto cada um teria uma prateleira para colocar o que quisera. Separei toda minha coleção de livros do Veríssimo, Florbela Espanca, Hemingway e os organizei por ordem alfabética. E por tonalidade também, confesso. Estava lúcido e, ao mesmo tempo, sonhando de olhos e coração aberto. Eu, a mulher da minha vida e meus escritores prediletos. Todos ali querendo mais de mim.
Tínhamos um amor maduro, de riso fácil e beijo doce. Maria era difícil de lidar e às vezes dormia no meio dos filmes. Coisa que, como homem, nunca consegui entender. Estava trabalhando com a luz do abajur acesa, ela vinha toda dengosa, se aninhava em meus ombros e dizia que queria assistir um filme. Cansado e um pouco intolerante ao pouco tempo que ainda tinha para terminar meus afazeres cedia aquele tempo a nós, e inquieta como era, ela perdia mais tempo fazendo pipoca e doces do que vendo o filme. E quando, em tom de pressa, eu gritava: “Amor, o filme já começou…” ela dizia: “Vai vendo, já estou indo”. Como se ela não fizesse falta. E quando chegávamos no ápice do filme, quando Jack descobria que Tyler Durden era seu alterego, ela cochilava e perguntava, sem pudor algum, o que havia perdido. Só a Maria mesmo… Saudade dos seus defeitos que insistiam tanto em ser qualidades.
Viajamos bastante. Maria vinha de uma família simples e não tinha tido tantas oportunidades de viajar como eu tive. Maria não sabia como o interior de Louvre era lindo, não sabia a importância de Gaudí para Barcelona, nem sabia que os talheres para comer peixe possuíam um garfo com dentes mais curtos e separados, e o gume da faca era arredondado e sem serra. Mas a sua vontade de aprender era grande, e isso era fascinante, já a minha vontade de ensiná-la era uma exclamação alegre na nossa relação. Pois desde pequeno minha mãe sempre me dizia:
“Fred, não deves se ater somente ao que as pessoas sabem ou não sabem. Às vezes elas não tiveram a mesma sorte que você, não tiveram acesso à viagens pelo mundo, cultura e um horizonte tão amplo como lhe ensinei a ter. Entenda que as pessoas não têm culpa dos aprendizados que não tiveram, mas sim dos aprendizados que querem e buscam ter. Divida seus horizontes, ensine tudo que sabes sempre sorrindo, e o mais importante: escute bastante. Pois saber se calar é uma arte e a boca pune quem tudo diz, e geralmente quem tudo diz não gosta de escutar tudo o que lhe é dito.”
Como uma via de mão dupla com a Maria aprendi como beijos mordidos são mais gostosos. Aprendi também, mesmo sem querer, como ela adorava beijos colados de barba entre as partes internas das coxas. Me ensinou a cozinhar e aproveitar tudo o que tínhamos na geladeira. Sim, até aqueles restinhos de queijo cottage. Mas eu a ensinei como assoviar com a língua dobrada, e isso ninguém teria à audácia de tirar de mim. Até porque todo cara quer ser o primeiro a ensinar a sua mulher a assoviar, ou pelo menos deveria.
Mas o tempo foi passando e quando Maria começou a ficar doente deixei de lado a vitalidade da cidade grande que tanto amava para vivermos no campo, sabia que o ar bucólico a faria respirar melhor. Adotamos dois cachorros grande e de pelo macio, pois sabia que eles a fariam sentir-se especial todas as manhãs. Fizemos uma horta em casa e juntos aprendemos que o segredo para uma hora abundante é a luminosidade. Fiz de tudo, deixei meu trabalho corrido para dedicar mais tempo à ela, servi café na cama sempre que possível, disse adorar o aconchego da sua barriga quente e a maneira que ela segurava a caneca de café com as duas mãos, mas não adiantou. E eu queria tanto que adiantasse.
Hoje Maria se foi, para um lugar pelo qual acredito ser lindo e aconchegante. A minha saudade, que aumenta a cada dia, virou lágrima e me fez aprender que amores que se vão sempre deixam um pouco de si. Maria deixou tudo, menos o meu coração. Espero que ele esteja protegendo-a, pois ela sempre teve medo de altura e de pessoas desconhecidas.
Sem ela restou-me livros que, infelizmente, ficam por baixo dos meus objetos encharcados de preguiça e pouca iniciativa. Me restou um pouco de geleia de damasco, roupas com seu cheiro de mulher assentida, sentimentos inóspitos e alguns poucos sorrisos quando, despretensiosamente, vejo nossas fotos congeladas em momentos inolvidáveis do nosso, tão nosso, amor.
Hoje, um pouco sem rumo, sento rente à nossa cama e agradeço em tom de sussurro: pelo menos não me fiz morrer, sem saber de ti.
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