Mulheres que você deveria conhecer: Ana Cristina Cesar

“E mais não quer saber

a outra, que sou eu,

do espelho em frente”

Ela que mexe no cilindro das palavras, em pleno desconforto do tempo real – é como se a palavra fosse a própria gota de suor, sem pressa, contemporânea de si e ao mesmo tempo atemporal. Sua poesia é uma prece sem modismos, sem sapatilhas de balé, garatuja, com pelos assumidos, com gritos engasgados que finalmente deixam a goela liberta. Morreu aos 31, jogou a vida pela janela, oitavo andar, em algum lugar de Copacabana. Deixou um bocado de textos brilhantes da encantada família da prosa-poética. Em vida também trocava cartas com Caio Fernando de Abreu, lançou alguns poucos livros, fazia traduções, frequentou as Letras da PUC e não me conheceu, uma pena.

“Esqueceria outros

pelo menos três ou quatro rostos que amei

Num delírio de arquivística

organizei a memória em alfabetos

como quem conta carneiros e amansa

no entanto flanco aberto não esqueço

e amo em ti os outros rostos.”

Palavras em cima de brasas, a mão queima, o nariz arde, e o espelho estilhaça. Ana Cristina César é uma como uma enchente do prosaico, a farsa da mulher de vestido-verde-velho-caseiro, caída nos ladrilhos da cozinha suja, chorando cebolas, de mamilos acesos, sem inércia, resistente ao frio dos azulejos, sobrevivente às vaias do moralismo. Existe ali naquele  espaço de vida-momento uma fagulha que não quer sair, cacos afiados, algumas verduras frescas, a teimosia fluminense, uma saudade de Londres, e no rádio: Trio Esperança.

Mulher que você deveria conhecer. Ana Cristina parece escrever em rascunhos, sua poesia é (in)pronta, suas palavras escorrem, e às vezes voltam atrás. Seu último livro, “Poética” tem uma estética interessante, é como um pot-pourri que permite arrependimentos textuais, com trechos propositalmente rasurados, como se a vida fosse uma carta invadida, como se alguém abrisse um envelope indevidamente, e descobrisse ali o seu mundo, suas placas de retorno, suas masturbações, seus recomeços em palavras, seus soluços e (auto) tiroteios.

“NOITE CARIOCA

Diálogo de surdos, não: amistoso no frio. Atravanco na contramão. Suspiro no contrafluxo. Te apresento a mulher mais discreta do mundo: essa que não tem nenhum segredo.”

Jogo Cristina no Google Images e fico olhando para ela, e é incrível como o seu olhar altissonante parece pedir socorro, há ali uma fragilidade sem disfarces, um luto listrado de quem vive a flor da pele, encolhida entre o chão e a parede de um quarto pequeno, cantando baixo como se soprasse um machucado. Textos que acompanham o caminho de uma artéria que se perde nas ramificações. Esse não saber mais para onde, esse distrair das referências, de desvendar alguém que linda-mente, mente mal.

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