O amor é nojento

Já limpei bunda de criança que nem da minha família era e que eu só vi uma vez na vida. Já matei barata naquele embate direto e sem direito a inseticida, em que ela estava armada com aquelas terríveis asas e eu, com meu modesto par de Havaianas. Já comi churrasco grego no centro de São Paulo, daqueles que vêm acompanhados por refresco sabor água-suja e por aquele vinagretezinho esperto tirado da gaveta onde o vendedor guarda também o dinheiro. Já engoli litros de água do mar da Praia Grande e vomitei até a alma como consequência. Mas se tem uma coisa que o nojo nunca havia me permitido vencer eram os – para a maioria da humanidade inofensivos – fios de cabelo. Qualquer um que não estivesse preso à cabeça de alguém me causava repulsa. Fosse no chão do quarto, na pia do banheiro, num prato de espaguete ou – urgh! – naquelas escovas de cabelo envoltas em intermináveis tufos embaraçados. Rapunzel muito provavelmente não me convenceria a salvá-la da torre se me jogasse suas tranças. Um fio de cabelo no meu paletó, ao contrário do que causou em Chitãozinho e Xororó, não me provocaria nada além de nojinho.

Até o momento em que eu conheci uma coisinha brega, porém deliciosa, descrita por muitos poetas e cantada por muitos mestres, que é composta por quatro letras e que começa com a e termina com –mor. O amor. Ah, o amor. Sagaz como só, ele me veio na forma de um homem lindo e… cabeludo. Não no comprimento, mas sim no volume. Pense numa pessoa que tem muito cabelo. Pense numa pessoa que tem mais cabelo ainda. Some a peruca das duas. Agora multiplique por dez. Esse é mais ou menos – arredondando pra baixo – o volume capilar dele. E apesar do amor deixar a gente anestesiado e encantado, não tardei muito a calcular que, se ele tinha muito cabelo na cabeça, muito cabelo devia cair também. Dito e feito. Deu a primeira noite em que ele dormiu na minha casa, e minha cama ficou forrada de cabelo. Forradinha da silva. Era tanto cabelo que dava pra costurar uma peruca. E era um cabelo tão preto e tão grosso que dava pra confeccionar uma vassoura piaçava. Se fosse qualquer um, no dia seguinte eu estaria arrancando os lençóis e chacoalhando freneticamente para todos aqueles fiozinhos detestáveis desgrudarem, pra eu então varrer, jogar no lixo e nunca mais pensar nisso. Mas era ele. Eu, então, me peguei olhando para aquele travesseiro cabeludo e me lembrando com carinho do dono de todo aquele DNA desperdiçado na minha cama.

É. O amor é cheio dessas peripécias. De nos fazer morder a língua. De fazer com que a saliva que a gente cospe pra cima caia em cheio na nossa testa. E de, ainda por cima, fazer a gente levantar as mãos aos céus e agradecer por ter essa saliva tão viçosa revigorando a pele e secando a acne. Como se converter repulsa por fios de cabelo em paixão não fosse milagre suficiente, o amor operou de novo. Desde pequena, sempre fui chatinha com pano de prato. Lá em casa, tinha um paninho pra secar a louça, um mais felpudo pra enxugar as mãos, e outro bem ralinho e fedidinho pra limpar a pia. Essas eram as regras da minha mãe, eu as defendia com unhas e dentes, e meu pai era a maior vítima da minha fiscalização. Isso porque ele adorava secar a boca no pano de prato. Todo mundo na sala, assistindo a uma novelinha, quando eu escapava pra buscar um copo d’água e – TCHARAM! – pegava meu pai com a boca na botija – ou melhor, no pano de prato. Aí era bronca, advertência por escrito e multa. Eis que, passados alguns anos – uma dezena deles, arrisco dizer – vem o amor. Sorrateiro e irônico, na forma de um homem lindo, cabeludo e… que também seca a boca no pano de prato.

E pra mim, vê-lo secando aquela boca linda no pano de prato, hoje, é acalanto. Porque amor é isso. É aprender novos conceitos e rever os antigos. É se reinventar sem medo de admitir que, sim, você esteve errado a vida inteira. É se apegar ao que realmente importa e deixar qualquer nojinho de lado. Pior do que tudo isso, é achar tudo isso romântico. Embora lindo, o amor é brega. E porquinho. Quantas vezes já me peguei cheirando a boca dele logo que ele acorda, pra sentir aquele odor doce e maravilhoso que só ele sabe exalar? Quantas vezes já me peguei, nesses dias de calor insuportável e de corpos em derretimento, enfiando o nariz na sovaqueira dele pra comprovar empiricamente o que jamais precisaria ser comprovado a curta distância? E por que a gente se submete a tudo isso? – eu me pego pensando. Porque a gente ama. E pra gente, tudo isso é incrível.

Sim, eu amo um homem lindo, cabeludo, que limpa a boca no pano de prato e que…

É são-paulino fanático, enquanto a minha família toda é palmeirense. Aperta o tubo de pasta de dente bem no meio, enquanto eu cultivo desde a infância a arte milenar de apertar caprichosamente pela bundinha. Tem ojeriza a redes sociais, enquanto eu sou rainha do Facebook. Após as refeições, religiosamente prepara o que ele chama de néctar dos deuses e que eu, se tomei cinco vezes na vida, foi muito: café. Solta os lençóis da cama e se enrosca neles, enquanto eu gosto de dormir metodicamente envelopada, com os lençóis bem presos embaixo do colchão.

E querem saber? Já tô até aprendendo a dormir com os pezinhos descobertos. Porque, afinal, amor é sobre mais do que ceder. É sobre ser feliz em ceder. Sem olhar pra trás.

Comentar sobre O amor é nojento

  • Myleide Barbosa disse:

    Que texto legal! Por vários momentos me vi rindo e lembrando dos costumes exóticos do meu namorado e de como eu amo cada um deles haha! Ah o amor…