O dia em que o amor morreu

A sala cheia de evidências. Cacos de vidro no chão, papéis rasgados espalhados por cima dos móveis totalmente destruídos, a parede manchada de vermelho. E um silêncio tranquilo. No tapete da sala, a vítima. Aos poucos os curiosos começam a se aglomerar contidos apenas pela fita isolante amarela e preta dos investigadores forenses.

Quem morreu?” pergunta a vizinha fofoqueira do 201 ainda vestindo seu pijama de estampa de gatinhos. “Foi o amor. O amor que morreu“, responde o síndico tentando equilibrar na mão uma xícara de café para não derrubar nas velhas pantufas azuis. “É, mas parece que não foi morte natural não, foi a moça que o matou”, sussurra a senhora de bobes nos cabelos com os olhos esbugalhados.

O delegado chega logo depois que o legista declara a hora final. 5h38. E você sabe, não é bem assim para tirar delegado da cama logo cedo pela manhã. Para ele aparecer pessoalmente na cena do crime a vítima tem que ser figura muito importante. E nesse caso era, afinal, o amor era muito conhecido naquelas bandas.

Os peritos vasculham o apartamento ainda atrás de novas provas. São muitos vestígios. Com certeza não foi um crime planejado, um choque na pequena vizinhança.

“O amor morreu bem no meio da sala, tingiu todo o tapete. Não era vermelho antes, o tapete era bege!” exclama o adolescente que passava por ali de skate no seu caminho para o cursinho. “Não era vermelho antes, o tapete era bege”, ecoavam os vizinhos boateiros.

Ainda muitos investigadores na cena do crime. Há indícios de luta, o amor não desistiu de batalhar até o último suspiro. Parece que amor custa a morrer. Não é assim de uma vez só. Vai sobrevivendo até o último suspiro. Para assassinar amor só mesmo de morte lenta e dolorosa que faz drenar até a última gota de toda a vida que ali existiu.

Os investigadores aos poucos se dispersam. Já recolheram provas suficientes. Claramente um crime passional. “Crime passional? Ah, ali naquele apartamento tinha muita paixão, sim senhor. Mas se acabou. E olha, não quero jogar lenha na fogueira não, mas nos últimas dias a mulher que mora aí andava muito esquisita. Antes eu ouvia risada o tempo inteiro. Voz de homem, sabe como é. Depois, só silêncio. Ele foi embora assim sem dar explicação. E Ella ficou aí sozinha cheia de amor. O senhor está anotando tudo que eu to falando, xerife?”, exclama a senhora dos cabelos tingidos de cinza roxo insistindo em prestar um depoimento espontâneo totalmente não solicitado.

Dentro da viatura da polícia, o único suspeito. Uma mulher. Ella. Aparentemente 27 anos. Cabelos presos em um coque bagunçado, ainda vestindo a camisola de seda da noite anterior. Ella tem estrutura pequena e pele macia, uma aparência quase frágil. Ninguém entende como Ella teve força para cometer um assassinato, matar o amor. Seu rosto sem nenhuma expressão visível. Aparentemente fria, mas ela estava fervendo por dentro. No caminho para a delegacia Ella confessa o crime sem orgulho, sem remorso. Fala assim como um ato qualquer, como se estivesse pedindo seu pão francês na padaria que abriu ali bem na frente do ponto de ônibus.

“Mesmo depois que tudo acabou o amor ficou. Eu até tentei expulsar o amor dali. Mas ele insistia em ficar. Sempre presente. O amor não ia embora nunca. Não acabava nunca. Veja bem, delegado, um amor insistente como esse, só matando.”

Os jornalistas fazem fila para entrevistar a delicada assassina. A população do pequeno bairro se divide em opiniões. “Desnecessário, podia ter deixado o amor viver mais um pouquinho”, profana a mãe dos três meninos barulhentos do 302 enquanto seu marido, o dono do boteco mais famoso da região, defende. “Ora, Ella não tem culpa. O amor era intruso na casa dela”.

E aos poucos todos voltam aos seus afazeres cotidianos.

O delegado, vaidoso com a atenção da mídia, diz aos colegas de trabalho que agora só aceita ser chamado de xerife. A vizinha fofoqueira do 201 tira seu pijama e veste uma calça preta e um blazer para trabalhar no único escritório da região. O síndico, cheio de energia depois de três xícaras de café, escreve uma carta acalorada aos moradores do condomínio solicitando que não usem mais o elevador social para transportar mudanças. A senhora que usava bobes agora solta os cabelos e passa maquiagem para o baile da terceira idade que começa às 15h. O adolescente chegou ao cursinho, mas tinha esquecido da prova de história, e agora tenta espichar os olhos para conferir a prova da menina de cabelos cacheados e óculos azul. A senhora de cabelos roxos solta gargalhadas depois de aprender a mexer no Facebook e procurar seus velhos colegas de escola. A mãe dos três meninos barulhentos agora pede ao marido que abaixe o volume da televisão, já chega de novela por hoje.

E tudo volta ao normal. E todos vivem como antes. O dia em que o amor morreu é só mais um dia comum como outro qualquer.

Comentar sobre O dia em que o amor morreu