O inferno astral de uma leonina

Sabrina era de 29 de julho de 88. Fazia, portanto, pouco menos de 27 anos que agradecia quase que diariamente por não ter nascido cinco meses antes. Porque, como boa leonina, simplesmente não poderia suportar o fato de seu dia existir apenas a cada quatro anos. Se já era difícil ter que dividir seu aniversário com as férias de julho e com as viagens dos amigos e familiares nesse período – ano que vem nem chamo a Julinha, ela sempre prefere visitar os pais dela em Londres, hunf… – imagine três vezes em cada quatro anos ir dormir no dia 28 e já acordar no dia 1º? Seria como se Deus tivesse a trolado. Como se o mundo tivesse jogado a pior maldição cabível a um ser humano: a de ganhar rugas e de perder cabelos sem sequer ter a chance de tirar um dia para si, para comemorar e tomar uns bons drink cazamiga.

Era 30 de junho. Tão logo pegou o celular para desligar o maldito despertador, percebeu que havia algo de muito errado: ninguém respondera à sua última mensagem no *Grupo das Ladys*. E olha que era uma notícia bombástica: ela tinha pegado o Renatinho, melhor e mais cobiçado jogador de futebol de salão do time da faculdade. E a saga fora relatada com detalhes: ele lhe oferecera carona, ela aceitou. Os dois conversaram sobre Legião Urbana, panelaços com Le Creuset, o novo SUV da Honda. Quando o carro do Renatinho parou no primeiro farol da República Geral, ela deu um sorriso, ele tirou o cabelo dela do rosto e disse que ela era linda. Os dois se beijaram tanto que o farol ficou verde e vermelho e verde de novo. Cena digna de novela. E ninguém havia comentado? Ah, devia ser inveja. Mas o recalque alheio bate no salto do meu Louboutin e volta em forma de celulite e halitose pra vocês, queridas. Vamos seguir o dia, que não é uma mensagem não respondida que vai me derrubar.

Certificou-se de que o primeiro pé a pisar o chão era o direito. Levantou-se, se espreguiçou em frente ao espelho e – aaaaaah! Mas o que é esse óvni no centro da minha cara? Uma. Espinha. Gigantesca. Bem. Na. Ponta. Do. Nariz. Como ela, Sabrina de Bourbon e Alcântara, poderia suportar esse golpe? Bem hoje, que era dia de festa a fantasia open bar em que ela iria fantasiada de Bat Girl, com aquela máscara que evidenciaria ainda mais seu nariz? Desistiu do banho matinal só pra ter alguns minutos a mais pra se dedicar à maquiagem corretiva. Primer, base, corretivo, iluminador, pó compacto. Nada como um bom reboco para salvar a reputação.

No trabalho, as meninas conversavam sobre o novo comercial do Boticário. As opiniões eram irritantemente controversas.

– Ah, foi só um abraço! Queria ver se fosse beijão de língua mesmo… – disse Raquel.

– Mas como os meus filhos vão crescer com essa referência de relacionamento? A Bíblia diz que relacionamentos homossexuais são profanos… – rebateu Solange, que na quinta deve ter ido à Marcha da Família com Jesus.

– Bom dia, pessoal! – exclamou Sabrina, animada.

– Deixa de ser homofóbica, Solange! Amor é amor em todas as suas formas. – respondeu Raquel.

– Eu não sou homofóbica. Até gosto de gays, mas não na minha família, né? – disse Solange.

– Bom dia, gente… – repetiu Sabrina, com a animação reduzida à metade.

– Você é homofóbica, sim! Abre essa sua cabeça. Orientação sexual não tem nada a ver com caráter. – acusou Raquel.

– Gente, vocês viram meu sapato novo? – Sabrina tentou mudar de assunto, ao ver que a discussão estava ficando calorosa demais.

– Eu sou uma mulher de Deus. O Senhor é meu pastor e nada me faltará. – Solange parecia uma pregadorzzzzZZZZzZZzzZZZzzz.

– Ah, inclusive foi o Senhor que te deu essa bolsa, essa camisa, essa saia… Acorda, Solange!

E a discussão continuou por mais alguns minutos. Pela primeira vez, em nove meses de emprego, Sabrina não era o centro das atenções logo pela manhã. Um dia era elogio ao cabelo, no outro ao cinto, no outro à combinação bota + calça… Hoje, a homofobia era mais importante do que ela. Engoliu em seco, ligou o computador e começou a trabalhar freneticamente. 10h20 e ninguém ainda havia dito o quão linda era sua saia de couro tendência. 11h13 e nada. 11h45, e a Maitê, do RH, entrara na sala de cabelo novo. Ombré hair, como dizem por aí. Uma rasgação de seda geral. Como você tá linda! Quem fez esse cabelo bapho em você? Diva, arrasou! A verdade é que nem tinha ficado tão bom assim. Todo mundo sabia disso. Sabrina sabia, inclusive, que o ombré dela era muito mais bem feito. Mas aquelas meninas eram um bando de puxa-saco mesmo.

Enfim, hora do almoço, a melhor hora do dia. Fim de mês, VR acabando, dia em que todo mundo come no PF. Todo mundo menos Sabrina – vale ressaltar. Afinal, comer com dignidade era o mínimo que ela poderia fazer para tornar seu dia de cão um pouco menos desagradável. Sentou-se sozinha à mesa. Em todas as outras mesas, pessoas confraternizando e conversando tão acaloradamente que ela passara despercebida – mais uma vez. Pegou o cardápio, escolheu filé de salmão ao molho de maracujá acompanhado de um mix de folhas. De sobremesa, um flan de frutas vermelhas. Comeu daquela vez como se fosse a última. Lambeu os beiços. Raspou o prato. Pediu a conta.

– No crédito, por favor.

Silêncio. Aqueles minutos entre digitar a senha do cartão e ver a bobina imprimindo o comprovante de pagamento costumam ser os mais tensos do mundo.

– Não passou, senhora.

– Não é possível. Eu devo ter errado a senha.

Tentou mais uma vez.

– Não tá indo, senhora. Crédito insuficiente.

E Sabrina se pôs a contar moedas. Insuficientes. Nada pode ser tão humilhante assim para um leonino. Conversou, pediu, implorou e conseguiu negociar o pagamento do almoço no dia seguinte.

Voltou ao escritório correndo. Tinha uma reunião às 13h30 para apresentar um projeto ao comitê de RH. Sabia que ia brilhar – como sempre acontecia. Com toda a sua luminosidade natural, encantaria todo mundo. Responderia a todas as perguntas feitas pelo comitê e, é claro, seria ovacionada ao final do encontro.

– Hmmm, Sabrina, não estamos no melhor momento para implantar um projeto desses. Esse trimestre o foco é recuperar a nossa balança comercial e não vejo como a sua ideia pode contribuir para isso.

Arrasada, Sabrina voltou à sua mesa. Ela, que não é muito habilidosa em ser multifuncional, trabalhou rezando para que aquele dia chegasse ao fim. Ou para que, pelo menos, ela pudesse chegar em casa e se afundar nos dramas alheios do Netflix. Cinco horas em ponto ela desligou o computador. Saiu na rua se sentindo um lixo da pior espécie. Por que comigo? Cadê minha tendência ao sucesso? Cadê a parte do dia em que eu chamo a atenção? Até que, no terminal de ônibus, percebeu que as pessoas finalmente olhavam para ela. Começou com uma senhorinha que muito lembrava sua avó. Depois, uma vendedora ambulante. Um mocinho bonito que lia um livro até suspendeu a leitura para observá-la. O feitiço da minha invisibilidade foi quebrado, pensou, sorrindo. Não há mensagem não respondida, espinha na cara, bom dia não dado, elogios não recebidos, cartão sem limite ou projeto declinado que derrube uma leonina, beijou o ombro. Porque quando a gente nasceu pra brilhar, o mundo reconh

Fora interrompida em suas divagações por um cutucão. Era uma criança ruiva. Parecia ter saído dos contos de Nárnia.

– Moça, sua calça tá rasgada. Bem na bunda.

Não soube reagir. Nem quis ver. Apoiou-se na pilastra para que ninguém contemplasse o seu desleixo na hora de se vestir. Ela, que sempre quis aparecer, agora não queria nem existir. Entrou no ônibus segurando a bolsa atrás do corpo, na tentativa de cobrir o rombo. Por sorte – talvez a única do dia – conseguiu um lugar para sentar. Pegou o celular. Olhou a data. Era 30 de junho.

Primeiro dia do seu inferno astral.

Comentar sobre O inferno astral de uma leonina