Sua casa, seu espelho – A importância dos serviços domésticos na vida pessoal
Somos de uma geração (80, 90, 00) que foi educada para ser poupada da dor própria da vida. As crianças não podem tropeçar, comer glúten, ralar o cotovelo, enfrentar uma nova matéria na escola, arrumar o quarto ou passar contrariedades. Com isso desenvolvemos uma força de vontade pálida, cheia de apatia, tédio e necessitada de estímulos muito altos para saber que existe alguém respirando.
Os aditivos vem “salvando” uma série de vidas que sem uma cheirada ou uma fumada nada tem real sabor. Nesse sentido quando algumas pessoas recomendam “lavar o banheiro” para curar uma depressão sei dos exageros desse tipo de recomendação e até o desconhecimento de psicopatologia, mas sei também que a ideia de colocar a mão na massa tem a sua dose terapêutica.
Uma moça que eu atendo que veio inicialmente com uma queixa de TDAH e ansiedade depois de alguns meses de terapia foi deixada sozinha em casa por conta de uma viagem dos pais. A ela foram atribuídas todas as tarefas de casa, desde fazer o supermercado, arrumar as coisas, lavar a roupa, cuidar dos animais de estimação. Foi uma sessão tripla de terapia que coroou todas as nossas conversas anteriores. Ela me confessou que depois de aceitar a contragosto o empenho resolver ir a luta, se não se mexesse não “sobreviveria”. Ir ao supermercado não foi como antes, ela teve que eleger exatamente o que precisaria repor na dispensa para comer, dormir e ficar limpa. Cada produto que antes era visto com desprezo nas gôndolas ganharam brilho diferente. Aquilo faria parte de uma experiência de prazer em sua vida.
Cozinhar foi outro desafio, pois teria que pesquisar, manter a concentração, medir as quantidades, o tempo e fazer aquelas coisas sem graça virarem seu prato delicioso. Nada gourmet, mas comestível. Até na hora da comida sabia que teria que colocar a quantidade exata e raspar o prato só para que nada ficasse tão sujo que causasse trabalho extra na hora de lavar a louça. Até o detergente virou seu amigo contra as gorduras impregnadas nas panelas.
Fazer cocô nunca seria como antes, o banheiro ganhou contornos desconhecidos e ela precisou quase descobrir o funcionamento de química básica para não colocar nenhum produto fora de lugar. Como por exemplo que limpa-vidro não servia para deixar a privada cheirosa. Os seus gatos que sempre fofinhos apareciam lindos diante dela se transformarem em seres complexos que não recolhem o cocô por conta própria e que não bebem água se alguém não repuser cada gota. Ela se sentiu envergonhada de anos de quarto bagunçado e de se sentir preguiçosa de jogar tudo pela casa como se fosse uma pocilga. Quis receber os amigos e sentiu vergonha de habitar um caos e percebeu que era mais fácil arrumar cada coisa logo que pegava do que acumular uma pilha de porcarias sem utilidade. Descobriu que as roupas não brotavam da gaveta e deu valor ao sabão em pó, descobriu de onde tudo vinha cheiroso, limpo e passado. Ela própria fez as pazes com a tábua de passar. Passou a respeitar os lixeiros, faxineiras e qualquer trabalhador braçal que era visto com um ser invisível em sua vida.
E assim percebeu que seu déficit de atenção era fruto de um comodismo e pouca importância que dava para cada coisa e que sua ansiedade era por ficar com a cabeça nas nuvens pensando numa vida não vivida. Entendeu que ao colocar literalmente a mão na massa seu sentimento de importância cresceu e que podia realmente ser dona do próprio nariz. Agora estava pronta para realmente ser uma mulher e não uma garota que peitava os pais, mas que agia como um bebê mimado. Agora essa mulher não tem mais medo da vida, pois sabe que como qualquer um, pode levantar, pegar um pano e dar um jeito nas coisas a sua volta. Qualquer pessoa com uma boa dose de bom senso pode chegar nessa reflexão, seja homem ou mulher: problema é para ser resolvido e não lamentado.
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