Viver é deixar pedaços
São Paulo é uma cidade grande. Tão grande que só quem (sobre)vive aqui – ou em Nova Iorque ou em Tóquio ou em Xangai ou na Cidade do México – entende as dimensões assustadoras dessa gigante que nunca dorme. Anteontem, depois de quase uma hora e meia acomodada num assento de ônibus – sim, uma hora e meia é um tempo de deslocamento bastante factível dentro da cidade de São Paulo – passei pelo cruzamento de uma grande avenida com uma ruazinha onde, um dia, eu morei. Meu primeiro lar em São Paulo, por sinal. E me pus a pensar em quantos pedaços meus eu deixei por ali. Às vezes até literalmente – como nas inúmeras vezes em que tombei de bicicleta por aquelas vias e perdi tampões de joelhos e cotovelos.
Mas, acima de tudo, psicologicamente. Quanto da minha bravura ficou nas esquinas escuras que, por vezes, eu precisava cruzar para ir do ponto de ônibus até a minha antiga casa? Quanto da minha doçura ficou na portaria do meu antigo prédio, ratificando a minha simpatia às plenas sete horas da manhã? Quanto da minha disposição ficou nos lances de escada dos nove andares que eu fazia questão de subir e descer a pé todos os dias? Não sei. Aliás, nem sei se essas coisas são mensuráveis. Tudo o que eu sei é que é humanamente impossível viver sem deixar pedaços. Impossível.
Que se manifeste quem souber gargalhar sem deixar um pedaço de alegria. Sofrer sem deixar um pedaço de tristeza. Ajudar sem deixar um pedaço de empatia. Ceder sem deixar um pedaço de gentileza. Não, não dá. Simplesmente não dá pra viver sem deixar pedaços. Por melhor economista que você seja, você há de gastar os seus pedaços enquanto vive. Fazendo o que você gosta, fazendo o que você não gosta e até sem querer. Escrevi mais uma linha, deixei mais um milímetro cúbico de mim numa página de Word.
E quer saber? Quero mesmo é que todo mundo deixe seus pedaços. Pelas ruas, nos outros, nas casas dos outros. Na vida dos outros. Que em cada ônibus, ao final do dia, os passageiros deixem pedaços de alívio. Que em cada cama, no começo do dia, os trabalhadores deixem pedaços de sonhos. Que em cada moça desamparada, as manas deixem pedaços de sororidade. Que em cada moço apaixonado, os brothers deixem pedaços de bom senso. Que em cada rodada de cerveja, todos deixemos risos soltos. Que em cada discussão acalorada, todos deixemos pedaços de compreensão.
Porque ser humano, meus caros, é se doar. É deixar ir, pra também deixar chegar. É se permitir ser, dar, fazer. É, antes de qualquer coisa, desapegar.
E a despeito de já ter deixado tantos pedaços meus por aí, ainda sou completa. Porque a minha fonte é o amor. E o amor, meus caros, é fonte renovável.
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