A prova de amor que não devemos dar
É noite. O homem visita a mulher que ama, na esperança de trocarem uns amassos, quem sabe uma pegada mais forte. Mas ela diz que está indisposta e despacha o coitado, e com pressa. Chegando na sua casa, ocorre a ele que talvez ela esperasse um outro homem naquela noite. Ciúmes.
O apaixonado dá-se ao trabalho de retornar até a casa da sua amada. Ali, na escuridão da rua, vê, pela janela, a luz do quarto dela acesa. Aproxima-se. Ouve vozes. Não aguenta e bate na persiana. Quer pegar a traidora no flagra. Abrem a janela de repente. Dois velhos colocam suas cabeças para fora. Nosso amigo confundiu as janelas e bateu nos vizinhos. O quarto dela está com as luzes apagadas. Alívio.
Essa cena é descrita por Marcel Proust em seu romance “Em Busca do Tempo Perdido”. Mas ele não a termina aí. O escritor, ao concluir a cena, descreve da seguinte maneira os sentimentos do homem apaixonado:
“Ele afastou-se com desculpas e voltou para casa, feliz por não ter dado a ela, com seu ciúme, aquela prova de que a amava demasiado – prova que, entre dois amantes dispensa para sempre aquele que a recebe de amar o suficiente.”
A parte final é a importante. Marcel Proust é não só um dos maiores escritores de nosso tempo. Também é reconhecido como um dos maiores especialistas nos assuntos do coração. Em sua obra, faz uma minuciosa análise de um dos mais avassaladores sentimentos humanos, o amor.
Mas será que ele tem razão? Será que há provas de amor que não devemos dar, por dispensarem aquele que as recebes de nos amar o suficiente? Será que cenas de ciúmes são uma dessas provas indesejáveis?
Talvez o amor seja como uma dança, em que certos passos terminam prematuramente com a coreografia e interrompam a música. Certas cenas de ciúmes talvez componham um passo em falso que, se não acaba com a dança, ao menos torna os movimentos do outro dançarino cada vez mais mecânicos e sem entusiasmo.
Haveria, portanto, provas de amor que não devemos dar, pois provam mais do que deveriam. Provas com as quais dispensamos o outro, ainda que ele nos ame até então, de nos amar o suficiente a partir daquele momento, pois demonstramos ter amor o bastante para os dois. Dispensamos, com esse tipo de prova, o outro de cuidar e de alimentar o amor que sente por nós.
Claro, existe o ciúmes por amor e o ciúmes por mera possessividade. Nesse último há muito pouco amor e dele não se fala aqui, embora seja também nocivo para uma relação, destruindo-a como forma disfarçada de egoísmo e insegurança que é.
Mas o ciúmes que vem do amor também pode ser letal para relação. Nesse caso, o ciumento acaba criando a própria situação que teme, ao demonstrar tal sentimento reiteradamente: ele prova que ama muito, e dá uma carta branca ao outro para não se esforce tanto na tarefa de nutrir seu amor.
Disse “tarefa de nutrir seu amor” pois um grande amor não nasce pronto e acabado. Um grande amor é uma construção. O sentimento fundamental está lá desde o começo, mas precisa ser nutrido, cuidado. Um grande amor exige a cumplicidade de dois obreiros, de um casal de construtores que levem tijolos e argamassa todos os dias para que fortaleçam as paredes e alicercem sua relação contra as intempéries e os terremotos da rotina.
O problema é que a natureza humana, principalmente a dos homens, é meio preguiçosa, até mesmo acomodada. Quando se dá certas provas de amor através do ciúmes, algo ocorre que só a longo prazo será percebido: é como se disséssemos ao outro que estamos dispostos a levar muitos tijolos, até mesmo o dobro de tijolos que deveríamos carregar.
É como se disséssemos que topamos até mesmo fazer a parte do outro nessa tarefa, tudo por nosso amor. E, com essa prova, o outro fica meio confiante de que pode descansar um pouco, até diminuir sua jornada de trabalho.
Ocorre que o segredo do amor não está na obra em si. O essencial do amor não está exatamente em suas paredes e alicerces, e sim no esforço e na dedicação que fez essas paredes e alicerces serem construídos. É no trabalho contínuo, e não no fruto desse trabalho, que está coração pulsante do amor. É no esforço de quem carrega o material da construção que se esconde a riqueza de uma relação.
Portanto, e se Marcel Proust estiver certo, talvez o melhor seja deixar o outro sempre de prontidão, disposto ao trabalho, furtando-lhe de certas provas de amor que, talvez, sejam até mesmo desnecessárias, pois exageradas. O ciúmes demasiado, o ciúmes contínuo, é uma dessas provas, senão a principal.
Não que devamos ser falsos, mas apenas prudentes na preservação daquilo que temos de mais valioso. E não que devamos deixar o outro com dúvidas sobre nosso amor, mas apenas com aquela pontinha de insegurança que é, afinal, o tempero de toda relação.
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