Carta-resposta ao politicamente (in)correto Ricardo Coiro

Ricardo Coiro, adoro você, suas poesias e as reações que você provoca nas leitoras (é bonito imaginar os gritinhos), já dei muita risada com seus textos e opiniões, acredito que você busca um mundo onde mais pessoas possam sorrir e ser o que são, eu também. Você tocou em um aspecto delicado do politicamente correto nesse texto e influenciado pelo livro do Pondé, que admiro com reservas (como todo mundo deveria ser admirado para não virar um fanboy). Pareceu que houve uma confusão entre o politicamente correto, com lutas sociais pelo direito das minorias e com chatice e conservadorismo. São coisas distintas que podem se confundir no meio de um discurso, não acha?

Imagine um grupo de pessoas, um homem branco de classe média, uma mulher branca de classe média, um homem negro pobre e um anão (você citou os anões e vou usar esse exemplo lúdico). Se alguém é chamado a falar, mesmo que ninguém se dê conta disso, por puro automatismo subliminar quem terá a voz inicialmente será o homem branco de classe média. É quase irresistível que isso aconteça, mesmo que ninguém perceba existe um manto invisível que recobre a figura do homem branco em detrimento dos demais, que só se sentem legitimados a falar depois. Talvez o anão nem se manifeste, mas não porque ele individualmente não seja um cara legal, mas porque os anões foram anulados tantas vezes historicamente que ele não sente que tenha mais nada a acrescentar depois dos não-anões terem falado com tanta “propriedade”.

Você, Coiro, escolheu a feliz ocupação de uma voz que é ouvida e respeitada pelo que expressa e sim, você tem um papel diferenciado de influenciar nessa teia invisível de preconceitos que faz com que uma voz seja ouvida e outra não. Até se nesse grupo hipotético você como homem branco dissesse “eu queria que meu colega anão falasse primeiro” estaria confirmando seu privilégio, afinal o elitismo branco estaria impregnado em nós e sua voz seria ouvida para legitimar que o anão pudesse falar.

Mas em vários lugares, o anão precisa tomar o microfone de quem se acha no direito de falar o tempo todo como se o mundo não tivesse nenhum anão. A militância do politicamente correto pelos direitos dos anões iria cutucar o privilégio dos não-anões que se queixariam de estarem sendo repreendidos no seu direito de liberdade de falar o que quiserem. É verdade, todos sempre tem o direito de falar o que quiser, mas quem são esses todos? Os não-anões, porque os anões só estão tendo essa chance histórica bem recentemente.

Você escreve para uma geração de pessoas, nascidas entre 1990 e 2000 que parece achar tudo chato e ver as regras como “coisa de gente mala, xingo tudo no twitter”, ou seja, que confunde liberdade de expressão com ofender anonimamente qualquer um em redes sociais e sair correndo. Então sim, precisamos pensar duas vezes em quem o calo vai doer antes de falar, não somos crianças mais e o pé que acertaremos talvez seja de uma minoria que talvez não irá se rebelar contra você. Principalmente porque você é legal, inteligente e engraçado.

Você consegue saber a diferença entre não sentir atração por gordos, como falou no seu exemplo, mas não hostilizar alguém que está acima do peso (normativo). Mas será que seu leitor médio, caso leia algo onde você expressou sua repelência, entenderá o percurso que você adotou para que não se sinta simbolicamente autorizado a tirar sarro de alguém nessas condições? Escrevemos para quem está formando seu senso crítico e seu conjunto de valores, e para escrever é preciso sim adotar uma perspectiva bem clara e as vezes pedagógica, afinal o bom senso não é privilégio de todos.

Existe dirença entre o correto e a Doriana, o que é correto pode ser versátil e original, até porque é bem trabalhoso acolher a diversidade humana. Falar mal do gordo, do vesgo e do manco é tão fácil que até uma criança consegue fazer. Não se engane meu caro, liberdade de expressão não é falar o que vem a cabeça sem critério nenhum.

Sua voz (que defende o incorreto) não não deve ser calada, mas repensada, trabalhada para servir a todos e não quem concorda com você. Você pode falar que gosta de pepino sem nenhum pudor, mas uma garota será vista (subliminarmente) como uma vadia chupadora de pintos, sabe porque? Porque tem quem ache chato o que é correto e gosta de escancarar o seu preconceito sem ser alertado que está senso hostil. As opiniões pessoais são mensagens lançadas no espaço público e tem consequências e não precisam ser expressas a pretexto de liberdade, podem ficar guardadas com você se afetam outras pessoas indiretamente.

Passamos por tempos de transição, Coiro, onde as desigualdades estão sendo colocadas na mesa e as minorias estão ganhando voz e exigindo o que é correto para que a discrepância histórica seja minimamente nivelada. Sabe aquele seu amiguinho de classe que não abria a boca? Agora ele está podendo falar e isso incomoda quem ficou com a boca aberta durante o ano letivo inteiro, e ainda assim seu amigo é chamado de patrulha do politicamente correto só porque não admite mais que alguém se levante para tirar sarro dele. Talvez ele perca um pouco a mão, mas para você que passou o ano inteiro falando vale deixar que ele se empolgue para depois ser uma entre tantas vozes da sala.

Quando se tenta colocar um anão ou um índio em um contexto que não parece verossímil isso é na sua realidade, pois seu olhar pode estar enviesado, mas eles estão escondidos por aí, talvez não no seu bairro ou na sua cidade, mas estão aí, São Paulo e Rio de janeiro não é o Brasil, lembre-se disso na hora de argumentar. Simbolicamente é importante haver essa narrativa que inclui forçosamente as minorias até para gerar o choque da realidade que elas estão socialmente invisíveis.

Ser correto é enfadonho para quem gosta de viver descendo a ladeira e acha bonitinho pisar na grama, mas Coiro, são 7 bilhões de pessoas vivendo em um planeta com recursos limitados, já houve desigualdades históricas brutais. Mulheres e homens negros votam porque alguém politicamente correto teve que ser o chato da vez para dar voz a eles. É chato tem que lembrar disso, mas nem tudo na vida são flores. Dois exemplos de ser correto sem ser chato, texto da Nathalí Macedo e da Bruna Grotti.

E não, isso não é um assassinato da sua expressão (sem falácia do espantalho, por favor), a maioria dos militantes que defendem as minorias não estão dispostos a matar, mas apenas a colocar barreiras ideológicas e jurídicas contra o ataque da maioria privilegiada. Se você hoje pode começar a dizer “eu não acredito em deus” é porque existe uma militância que vai bater de frente com o status quo para defender seu direito de não acreditar em deus sem ser visto como “um cara mau”, como falou no seu exemplo nos comentários do texto.

De fato, nem tudo é bonito na luta pelo direito de minorias, mas é importante não confundir isso com conservadorismo, que parece ser o que você ataca e confunde com politicamente correto. E mais, é preciso ter senso crítico de saber que existem contradições humanas sim em ser correto ou qualquer movimento, pois existe um filtro invisível que nos faz odiar coisas que nem sabemos porque, mas ter ciência dessas contradições é bem diferente de ser hipócrita.

Como evidenciar o lado escuro da humanidade sem com isso criar uma mentalidade eu versus o outro? Como deixar que o pior da personalidade aflore e possa ser acolhido com ternura sem que se abafe? Como dar lugar às nossas contradições sem que se ofenda ou silencie um grupo de pessoas? Como preservar o bem-estar de todos sem ser retrógrado ou conservador?

Ficam mais perguntas e desafios do que respostas prontas. Obrigado Ricardo, por ter levantado esse debate.

Comentar sobre Carta-resposta ao politicamente (in)correto Ricardo Coiro