Eu não vou me adaptar
Você é muito complicada, garota! Dessa vez a frase não veio na contramão de algum opinioso que se voltava contra alguma verdade minha. Vinha de um comboio, todos em linha reta na minha direção. E eu que me achava tão boa motorista, respeitadora de regras. Quantas vezes me peguei parando até em sinal verde! E agora a fila acelerava e me confrontava com faróis altos e buzinaço: você está na direção errada!
De repente, nos vemos assim: tortos. Como se tivéssemos entrado sem querer na festa errada, com a roupa fora da ocasião. Mas insistimos em ficar lá, naquela turma que não nos entende, tentando falar o que não ressoa em lugar nenhum, buscando desesperadamente adequar nosso paladar ao cardápio. E vamos nos entortando, nos conformando pra entrar na forma. Viramos a aluna exemplar da família, a que entende as pessoas, a queridinha da turma. A que escreve em linhas retas e pinta sem sair do contorno. A que bate cartão sempre na mesma hora. Queremos, afinal, que o mundo nos aceite! Por dentro, acumulamos raiva, remorso, venenos que vão minando nossa vontade de viver. E dia a dia murchamos um pouco mais. O trabalho vira as sete milhas do condenado que a cada passo, o aproxima da morte. O relacionamento não é frio nem quente… pra falar a verdade, nem pra morno serve. Mas é assim a vida. Aceitar, sofrer, calar.
Até que num dia qualquer, parada em casa acompanhando o fio de chuva que desce pela vidraça, no meio do banho quente, cruzando com um amigo esquecido, ouvindo a música que você dançava de rosto colado com seu grande amor, qualquer coisa assim que, sem querer, desperta sei lá o que dentro da gente, alguma coisa acontece. A chama que você jurava morta reacende. O pensamento tantas vezes forjado no torno pra caber nas certezas do mundo, dispara feito mola liberta da pressão. Não é possível viver no dar de ombros do ‘sim, senhor’. É hora de largar os papéis, tirar a maquiagem e descer do salto que não nos deixa bater o pé no chão. É preciso revolucionar tudo.
E pra mudar, temos que quebrar as regras e, muitas vezes, a cara. Reconhecer que somos superficiais demais. Transitamos entre o sagrado e o profano ignorantes de que a verdade está além das distrações. Cumprimos horários, recebemos títulos e nos achamos grande coisa. E não paramos pra refletir que nada disso importa. Não importa o lugar que ocupamos à mesa da vida ou se seremos bem servidos. Não é nossa experiência sensorial que dá sentido à nossa existência. Não importa nosso sobrenome. Nem nosso nome faz diferença. Nosso berço não vai nos livrar do túmulo. Ser preto, branco, pardo, gay, hetero, bi, pobre, rico… nada disso nos separa. Somos iguais em essência, gente que ri, sofre, respira, goza. O que vale é o que fazemos a cada dia pra nos aproximar mais de quem verdadeiramente somos. É aceitar os outros como são. Amar, permitir-se o amor, amar-se. Crer e botar fé nos outros também. Permitir a dignidade de se manter fiel a si mesmo. Sair da matrix que se nutre da seiva de vida dos nossos sonhos.
Nesse instante do acordar, com os faróis altos me cegando a visão e buzinas ensurdecidas disparadas que sou eu a errada, a que ninguém compreende, a que deve se enquadrar no conforto do ‘mal do mundo’, faço o que não se ensina a nenhum motorista: saio da estrada e largo o carro lá mesmo. Se é nesta rua que devo seguir, obrigada. Vou fazer minha própria trilha a pé.
A quem, como eu, acha que é mais difícil se adaptar a uma vida sem graça do que quebrar as regras e fazer o próprio roteiro, recomendo ‘Adaptação’. Apontado como ‘um drama hilário e uma comédia comovente ao mesmo tempo’, é denso, complicado, de dar nó na cabeça. Mas quem disse que a vida tem que ser fácil pra ser boa?
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