Não espere que o mundo mude da noite para o dia, só porque você mudou
Aquele seu amigo que ficou anos vivendo de mesada, que fez faculdade particular “nas coxas”, que acaba de conseguir um emprego bem remunerado e conquistar uma autonomia financeira que o permite morar sozinho, e da noite para o dia veste o independente e começa a execrar os amigos que ainda não saíram de casa.
Aquela prima que depois de 27 anos tentando parar de fumar, finalmente consegue e da noite pro dia, começa a perturbar os outros, esquece que existe o fator vicio e que isso acarreta dificuldade. Acha que a pessoa que ainda não parou é relaxada, suicida e fuma por puro charme.
Aquela moça sarada que já foi gorda e que depois de tentar mil dietas, na milésima primeira conseguiu emagrecer e com muita malhação, atinge um corpo atlético, e que de repente, da noite para o dia, passa a tripudiar de mulheres gordas, de fazer pouco de quem não atingiu um padrão físico supostamente adequado, como se ela nunca tivesse enfrentado dificuldade.
Aquele rapaz que teve o primeiro namorado aos 25, mas teve sérias dificuldades de comunicar sua homossexualidade aos parentes e que depois de conseguir, começa a descriminar outros gays que ainda não tiveram coragem ou terreno, passa a achar que só porque no próprio caso não foi tão difícil, todos vivem o mesmo contexto.
Quando algum assunto entra em pauta nas Redes Sociais muitas pessoas depois de três jogadas no Google e uma consulta ao Wikipédia passam a se portar como profundas entendedoras do tema, começam a contar vantagem, se vangloriam por um capital de conteúdo superficial, praticam um pseudo-ativismo recém adquirido e exigem que todos opinem sobre todas as coisas, exigem amor ou ódio instantâneo, ficar em cima do muro é sinal de falta de personalidade e comprometimento social.
Para que ninguém faça nenhum tipo de distorção, deixo claro aqui que esse texto não é contra alguém assumir a própria sexualidade, ou que uma pessoa pare de fumar. É uma crítica à opressão instantânea realizada por quem acabou de passar por uma situação mutatória com alto nível de dificuldade e que de forma hipócrita passa a dar lições sobre o que é melhor pra vida do outro, como se nunca tivesse esbarrado em embaraços para chegar ao próprio êxito.
Chegamos no tempo em que algumas pessoas que passam de uma situação problemática para a outra mais “leve”, ou moralmente mais aceita – e que inclusive enfrentam grandes dificuldades de transição –, da noite para o dia, passam a pressionar o mundo com arrogância, achando que tudo passou a ser fácil apenas porque elas já conseguiram, viram falsas veteranas. A diferença entre o cara que foi morar sozinho aos 27 e o cara que foi morar aos 28, é apenas numérica, ela não atesta nível de independência, isso tem a ver com escolhas e necessidades, ambos provavelmente possuem vivencias diferentes em variados aspectos.
É comum olharmos o mundo através dos nossos parâmetros, mas se você pensar bem isso é egocentrismo. Achar que o outro deve se comportar da mesma forma que você, exigir que o mundo atinja as suas expectativas de mudança a partir do seu referencial de tempo é no mínimo injusto e incoerente.
Termino esse pensamento com um trecho do “Poema em linha reta” em que recorro a Fernando Pessoa para reforçar essa minha indignação com o mundo dos “vencedores infalíveis desde anteontem”:
“Nunca conheci quem tivesse levado porrada. Todos os meus conhecidos têm sido campeões em tudo. (…) Arre, estou farto de semideuses! Onde é que há gente no mundo? Então sou só eu que é vil e errôneo nesta terra?”
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